2013, um ano de luta social em análise

(versão em pdf aqui )

Introdução

Diz-nos o economist que para 2014 Portugal tem risco elevado de “social unrest” (obtém um score de 3 numa escala de 1 a 4, em que 4 é o risco máximo). Esta notícia veio acordar alguns fariseus que andam embalados pela sua própria propaganda… Também serve de abanão para quem deste lado da barricada anda algo “desorientado” (aqui e aqui).

Na verdade, em 2013 as manifestações, greves ou ocupações foram quase quotidianas. Para além disso, no plano mediático, os casos e polémicas envolvendo o governo foram muitíssimo frequentes (só este ano foram 7 remodelações)… em média, não houve um dia sem um incidente e vários dias houve em que diferentes protestos de vários tipos tiveram lugar. 2013 foi um ano em que assistimos a protestos de massas, mas sobretudo a um alastrar e radicalizar da luta ao nível local e sectorial. Acções que em 2012 foram apanágio de grupos nas margens da contestação, em 2013 foram adoptados por grupos “mainstream”. O estreitamento da base social de apoio ao governo foi tornado claro nas eleições autárquicas. Eleições que também demonstram que existe espaço fértil para novos projectos políticos captarem o vastíssimo descontentamento difuso contra o governo e o regime em geral.

Este texto procura fazer uma revisão do que foi a luta social em Portugal no ano de 2013. A lista de eventos feita é necessariamente limitada, no entanto parece-me que todos os grandes momentos estão identificados, quer aqueles que marcaram pela positiva, quer os que marcaram pela negativa… sendo que alguns, como o 2 de Março, tiveram simultâneamente um carácter positivo e negativo. Os comentários e a síntese que faço está muito longe de abranger todos os tópicos que poderiam ser invocados. Mas creio que certas questões/reflexões fundamentais e raramente expressas em público constam deste texto. Uma das maiores armas ao serviço dos inimigos do povo de várias matizes é o de construir mistificações à volta da história, apagar certos eventos, difundir a desmoralização e o capitulacionismo entre a resistência. Por isso mesmo é fundamental que quem está deste lado da barricada não esqueça exactamente o que se passou, como se passou e porquê…

O maior objectivo deste artigo é fazer um registo e uma análise da luta, da perspectiva do movimento popular que combate o processo reaccionário em curso de empobrecimento generalizado e imposição da barbárie. Terá as suas limitações, mas proporciona uma base estruturada e minimamente sólida para uma discussão séria acerca deste assunto “entre os homens e mulheres de boa vontade”. Se de alguma forma contribuir para o alastrar e aprofundar da luta contra os sociopatas que nos governam, já cumpriu a sua função.

Começo por relembrar que já existem uma série de balanços que cobrem, grosso modo, o período de 2010 a meados deste ano.

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Este balanço é focado na situação nacional, mas como é óbvio, não vivemos numa redoma de fronteiras fechadas com o exterior. Antes pelo contrário. A nível Mundial e Europeu este foi um ano de grandes movimentações populares. Na Turquia e no Brasil rebentaram importantes protestos. Na Bulgária o governo foi derrubado pela rua, na Grécia a situação continua tensa (recentemente a embaixada Alemã foi crivada de balas de Kalashnikov, entre outros incidentes), na França a contestação intensificou-se (sendo o movimento dos “Barretes Vermelhos” a face mais visível disso), em Itália também tiveram lugar protestos de várias naturezas (desde os estudantis, à emergência de Beppe Grilo até aos dúbios “forquilhas”). No Estado Espanhol houve importantes lutas sectoriais e a tensão entre o espanholismo e a Catalunha avolumou-se. No Reino Unido a extrema-direita soft ganhou terreno, ressurgiu a luta estudantil e as relações com a UE continuaram a degradar-se. Recentemente na Ucrânia e na Tailândia ocorreram importantes conflitos sociais. Nem todos estes movimentos têm um carácter progressista, mas todos eles sinalizam o crepúsculo dos actuais regimes, o cerco ao “centro” prossegue e o pior erro que a Esquerda poderia cometer seria aliar-se estrategicamente ao status quo… isso seria equivalente à Esquerda amarrar-se com correntes a um navio a afundar…  de qualquer das formas é claro que este foi um ano extremamente “movimentado”. Acontecimentos que há uns anos atrás seriam abertura de telejornal, hoje são encarados como o “pão nosso de cada dia”. A “grande catarse” ainda está por acontecer, mas continuamos a dar passos firmes nesse sentido.

É também fundamental perceber que o desenvolvimento da luta social, embora não estando linearmente dependente, está bastante correlacionada com o desempenho da economia. Acerca disso fui escrevendo ao longo do ano aqui, aquiaqui e mais recentemente aqui. Em traços gerais, mesmo que o PIB suba umas décimas, em 2014 a situação social e económica da esmagadora maioria dos portugueses vai degradar-se, quer por roubos aos seus rendimentos, quer pelo aumento dos preços ou pela destruição do estado social (o encerramento da loja do cidadão dos Restauradores é apenas mais um exemplo…). Entretanto em Junho teremos um novo programa de saque, que será discutido em vésperas das eleições europeias, com os efeitos deste orçamento de estado já visíveis e com chumbos frescos do constitucional… Há quem lhe chame a “tempestade perfeita“. A nível global o facto mais relevante é que a grande crise de 2008 ainda não foi superada.

2013, uma revisão das lutas em Portugal. O mais significativo, aspectos positivos, aspectos negativos e a síntese possível… 

Das metas irrealistas, ou das desculpas para nada fazer. Impactos no mapa político-partidário. Parece que certas lições estão a ser apreendidas – A luta deve ser travada para confrontar, ter efeitos concretos e triunfar. Reconfigurações nos Movimentos. O Imprevisível é provável. Momentos decisivos.

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Eventos significativos e de alguma forma positivos, quer por si só, quer pelas dinâmicas que sinalizam.

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Foi este um ano “tranquilo” em que “não se passou nada”? Um ministro agredido fisicamente perante as câmaras de televisão que em seguida demite-se. As forças de segurança a protagonizarem um acto massivo de desobediência civil… Os professores paralisam as escolas, por duas vezes,  sendo que no mais recente protesto há vários episódios de confronto directo. Uma das maiores manifestações de sempre em Portugal. A multiplicação de greves e outros protestos locais, num ano que me atrevo a dizer, foi recorde no número de iniciativas de protesto realizadas. É isto “tranquilidade”? Engane-se quem quiser… mas os factos contam outra história.

Não houve uma revolução, não. Não houve o derrube violento deste governo, não (mas esteve perto disso…). No entanto, fora esses resultados extremos, o nível de conflitualidade social esteve muito elevado. Em certos aspectos até mais do que em 2012. As lutas a nível local e sectorial alastraram, a radicalização foi protagonizada por importantes movimentos e sectores, não estando confinada a fenómenos facilmente isoláveis (como a 14 de Novembro de 2012).

No entanto, é verdade que houve um certo recuo nos protestos populares de massas, trans-sectoriais, que abalaram o país no “Outono Quente de 2012”. Mas, é fundamental perceber que mesmo em períodos de Revolução aberta, não existem milhões de pessoas permanentemente na rua. Manifestações como a de 12 de Março de 2011, 15 de Setembro de 2012 e 2 de Março de 2013 são muito raras. O facto extraordinário não é não ter havido mais uma manifestação dessas em 2013… o facto extraordinário é nos últimos três anos terem ocorrido três manifestações dessas dimensões em Portugal. 

O carácter mais localizado e sectorial dos protestos também se aplica à CGTP. A 29 de Setembro de 2012 a CGTP encheu o Terreiro do Paço numa manifestação de massas que não repetiu em nenhum momento de 2013.  Quanto àquilo a que chamo de “constelação indignados” – qslt (Que se Lixe a Troika), 15 de Outubro, PI, “anarcas”/”autonomistas”, satélites do PC e BE para os movimentos e esquerda extra-parlamentar – foram responsáveis por uma série de protestos em 2013, aqueles que tiveram um carácter mais localizado foram os mais interessantes: grândoladas, protesto contra a Troika no Hotel Hilton, ocupação do “Ministério” a 25 de Abril, os piquetes móveis da greve geral, protesto a 5 de Outubro na praça do Município ou os cabazes para desempregados. Já as tentativas de manifestações massivas inter-sectorias só foram bem sucedidas a 2 de Março, mas mesmo aí nenhuma dinâmica relevante surgiu no seu rescaldo, ao contrário daquilo que se havia passado no pós 15 de Setembro de 2012.

A nível político-eleitoral, como acima referi, as Autárquicas proporcionaram a mais importante fonte de informação. Quanto aos resultados das sondagens,  elas apenas reforçam essas conclusões. Relembro que o PSD de Santana Lopes nas eleições legislativas de 2005 obteve 28,77% dos votos, neste momento as sondagens mais rigorosas dão ao PSD um resultado ainda pior. Toda a direita junta tem pouco mais de 30% dos votos, relembro que o pior resultado de sempre em eleições europeias da direita combinada, foi 33%. O mais provável é que em 2014 obtenham um resultado ainda pior. Quanto ao PS, está firmemente na liderança, mas a sua política de colaboracionismo e capitulação garante que não irão superar o seu score actual. O PCP irá reforçar-se, mas por si só é incapaz de agregar todo o descontentamento… o Bloco faliu e perdeu a capacidade de polarizar… portanto, para além do PCP, novas forças são necessárias para capturar o descontentamento das massas…

Para a mítica “União da Esquerdas” se concretizar, uma das condições necessárias é exactamente o surgimento dessas novas forças. Entre outras coisas, a aritmética eleitoral das actuais direcções da Esquerda Institucional -“alegristas” do PS, BE e PCP – precisa de ser abalada para que a tão falada convergência possa avançar. Para além disso, os recentes fenómenos “Livre” e “3D” revelam que existe energia e massa crítica suficiente à Esquerda para vencer a resignação das contas feitas, para ousar alterar a correlação de forças. Por outras palavras, são um sinal da vitalidade que ainda existe à Esquerda. Até que ponto esses sinais positivos poderão desembocar numa “frente popular patriótica e de esquerda” capaz de disputar o poder com um programa minimamente digno, é algo ainda por decidir, mas estão a dar-se passos na direcção certa.

É fundamental reflectir também acerca daquilo que correu menos bem…

  •  2 de Março, episódio sem continuidade. A grande manifestação de 2 de Março em termos quantitativos rivalizou com o 15 de Setembro, foi até mais numerosa em certos locais que não Lisboa. No entanto, esteve longe de ter o mesmo impacto político-social. Foi a última vez em que a fórmula “qslt”, ou quem quer que seja, teve a capacidade de convocar uma manifestação com centenas de milhar de populares nas ruas.
  • 1 de Junho, uma Alameda vazia de sentido. A 1 de Junho os povos não estiveram lá muito unidos contra a Troika. A partir do momento em que não são visíveis resultados concretos as movimentações que eram de massas, passam a acções do núcleo duro de activistas. Para além disso, ao contrário do que aconteceu a 2 de Março, não houve grande empenho na sua convocatória. O próprio percurso foi um equívoco. Poderia ter-se ido de Entrecampos até à sede da Troika, na verdade a manifestação parou aí por largos momentos num ruidoso protesto, mas em vez de terminar aí, como aconselhavam as razões tácticas e políticas, a “organização” preferiu conduzir o protesto para uma Alameda vazia de sentido que diluiu todo o protesto…
  • Crise política de Julho, o governo tremeu mas não caiu.  Uma das razões para não ter caído foi a ausência de protestos de rua significativos. Não foi por falta de tentativas e oportunidades, até há quem argumente que a multiplicação de eventos foi uma das razões do insucesso. O que é certo é que num momento absolutamente decisivo, em que o poder estava frágil, em que uma acção mais determinada poderia ter um impacto decisivo, a rua não respondeu… Houve protestos diários, mas todos pequenos, alguns diluídos em acções de campanha dos partidos de Esquerda… A maior acção foi convocada pela CGTP, sob um sol perigosamente abrasador, com alguns milhares de fiéis… demasiado pequeno e previsível para ter algum impacto concreto… Houve razões objectivas e subjectivas para este falhanço, é da máxima importância perceber-se onde se errou, oportunidades destas não se podem perder desta forma. Nas crises que virão em 2014 será fundamental ter uma maior capacidade de resposta. É necessário uma análise séria a esta questão, que vá para lá das respostas básicas, quer do estilo derrotista/capitulacionista “o povo não se quer manifestar, o povo apoia o Passos” (uma desculpa esfarrapada para encobrir e não assumir os erros cometidos pelas direcções da Esquerda), ou do estilo ultra-esquerdista “o PCP e o BE conspiraram para sabotar as manifestações” (útil para o reforço identitário de certos grupos). É verdade que as massas estavam algo “expectantes”, por isso mesmo era necessário uma decisão firme, concentrada e audaz. Algo que as organizações existentes foram incapazes de fazer…
  • A débâcle a dois tempos do 19-26 de Outubro. Depois da crise política, do verão e das eleições autárquicas a abertura das hostilidades sociais de Outono prometia…
    • A CGTP arriscava para lá do mero protesto “estamos aqui” e entrava em confronto directo com o governo, a famosa ponte a pé… parecia muita fruta… e foi. A derrota e retirada da CGTP nesse braço de ferro fez correr muita tinta (ver aqui, aqui, aqui ou aqui), houve cambalhotas espectaculares (ler isto e depois isto), houve desmentidos e sacudir água do capote e até as actividades sucedâneas da “constelação indignados” foram impregnadas com a mesma confusão e “sacudir água do capote“…  O que é certo é que mesmo na própria CGTP e PCP o assunto causou incómodo (como as reacções ao artigo linkado demonstram). A consequência mais vasta foi a desmoralização generalizada que contribuiu para queimar o terreno para qualquer grande manifestação “unitária” durante o que restou de 2013.
    • Disso mesmo ressentiu-se o 26 de Outubro, mas isso era sabido à partida. A sua convocação foi bem melhor que o 1 de Junho, mas inferior ao 2 de Março. Apesar da desmoralização e divisão resultado da retirada a 19, as circunstâncias objectivas eram mais favoráveis que a 1 de Junho. Dadas as condicionantes, uma manifestação que contou com 10 000 populares, pareceu-me o melhor que se poderia esperar. A falha do 26 não foi quantitativa, mas qualitativa. O “qslt” consolidou e confirmou a sua estratégia deliberada de “pacificação” do movimento, de dissuasão e prevenção de confrontos directos e, tão grave quanto isso, a sua linha anti-assembleias abertas. O movimento fecha-se sobre si próprio e o protesto segue um guião estreito onde não há espaço para o imprevisto e para quem não está no “apparat” semi-improvisado do “qslt”. O resultado é transformar o “qslt” numa espécie de agência convocatória de “manifes da CGTP com jambés”. Uma fórmula muito limitada e sem capacidade de movimentar massas ou acções de obstaculização directa da acção governativa… Coisa que a real CGTP com o seu muitíssimo mais robusto e adaptável aparelho até é capaz de ensaiar…

Seja como for, o efeito combinado destas duas débâcles 19-26 foi a desmoralização de um certo meio activista e o acicatar de algumas divisões (o que se passou neste blog foi um exemplo disso mesmo). Mas também me parece que de forma implícita ou explícita estas derrotas serviram para questionar as rotinas instituídas.  A verdade é que os avanços e mudança qualitativas na luta (e em qualquer outro processo…) não se dão de uma forma continua e linear, antes ocorrem por rupturas de paradigma, aos saltos, com avanços e recuos. Ora sem haver umas “quantas cabeçadas contra a parede”, sem as antigas fórmulas serem testadas e falharem redondamente, novos métodos não são adoptados e alterações qualitativas não ocorrem. Era bom que fosse de outro modo, era bom que não fosse necessário passar por estas derrotas desmoralizadoras… mas infelizmente não é essa a natureza do processo histórico. Citando um ultra-imperialista conservador e anti-comunista primário, mas que até tinha alguma perspectiva histórica e inegáveis dotes discursivos…

Want of foresight, unwillingness to act when action would be simple and effective, lack of clear thinking, confusion of counsel until the emergency comes, until self-preservation strikes its jarring gong -these are the features which constitute the endless repetition of history. (daqui)

Não estou a dizer que as derrotas no fundo até são positivas, não! As derrotas só podem ter alguma utilidade se estivermos dispostos a tirar lições desses falhanços. O primeiro passo necessário para isso é reconhecer uma derrota quando ela ocorre. O segundo é estar disposto a alterar e questionar os comportamentos padrão. Nada disto acontece automaticamente, só acontece se existir quem esteja disposto a por o dedo na ferida e propor rumos alternativos. Quem perante uma derrota não siga os dois caminhos clássicos, o da avestruz que enfia a cabeça na areia (táctica favorita da burocracia) ou a desmoralização e desistência (em geral o que acontece com as massas e periferias após o pico da luta). Uma derrota só poderá servir para alguma coisa, quando apesar da derrota, existe suficiente massa crítica que permanece na “luta” e é capaz de fazer a devida crítica às falhas existentes e não só propor alterações de rumo, mas testá-las na prática.

Por mecanismos implícitos e/ou explícitos é exactamente isto que se parece estar a operar no seio de vários movimentos e lutas.

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A síntese possível

Os eventos acima mencionados e os comentários feitos, são necessariamente apenas uma parte da realidade, retratada a partir de uma dada perspectiva. Mas mesmo um exercício tão simples como fazer a lista do que correu mal e do que correu bem, permite tirar algumas conclusões acerca do que é preciso corrigir, aquilo que se deve evitar, onde se deve persistir e que novos caminhos devem ser trilhados. Este é um exercício fundamental e que tod@s @s que estão empenhados na luta popular contra o processo de empobrecimento e barbárie devem fazer. Espero que este texto dê um contributo nesse sentido. Dito isto, creio que há uma série de conclusões importantes a tirar.

Das metas irrealistas, ou das desculpas para nada fazer

Há quem fique desmotivado porque não acontecem manifestações com milhões de pessoas nas ruas todos os dias. Há quem desespere com os resultados das sondagens, mesmo quando elas indicam que a direita está em níveis historicamente baixos, se não mesmo nos mais baixos de sempre. É ignorância ou desculpa para não fazer nada.

A contestação social atingiu máximos históricos, com manifestações gigantescas, protestos de várias intensidades e feitios, de diferentes sectores e de norte a sul do país. Mesmo a legitimidade eleitoral que este governo gozava, foi deitada abaixo nas autárquicas. É verdade que este governo espalhou a devastação e miséria de forma nunca vistas, mas mesmo assim a luta travou algumas medidas gravosas, como por exemplo a introdução da TSU, a privatização da TAP ou da RTP.

Os métodos e formas de luta devem ajustar-se às condições objectivas… O que não se pode fazer de forma séria e honesta é invocar o argumento de “falta de movimentação ou contestação popular” para vetar certos métodos de luta. Ou persistir na ideia falaciosa de que existe necessariamente uma contradição entre radicalização da luta e alargamento da sua base de apoio. O apoio popular ao protesto da polícia e dos professores é a prova de que por vezes é necessário radicalizar para obter apoio de massas para uma luta.

Impactos no mapa político-partidário

A luta e o combate social precede sempre a solução política. Foi assim na América Latina submetida aos ditames do FMI, que viveu a “década perdida” de 1980-90 e que só recuperou social e economicamente após um intenso processo de lutas sociais que vieram a desembocar numa série de soluções políticas implementadas a partir do ano 2000 (+-).

O Chavez na Venezuela surge na sequência do Caracazo e da tentativa de insurreição de 92. Os Kirchner na Argentina vêm na sequência do Argentinazo. O Morales na Bolívia é a tradução para o plano político das vitórias na guerra do gás e da água. O Correa no Equador só ascende ao poder na sequência de uma série de protestos e de um período altamente turbulento na política equatoriana. A recente eleição de Bachelet no Chile também acontece na sequência dos enormes e violentos protestos estudantis dos últimos anos. Dei exemplos da América Latina, mas poderia dar outros, como o da recente eleição do Mayor de uma Nova York pós-Occupy.

Na Europa também será e já está a ser assim. Vemos o afundanço do PASOK na Grécia e a ascensão do Syriza. A emergência do movimento 5 estrelas em Itália. A subida de novos movimentos “cidadãos” e da Esquerda Unida no Estado Espanhol, enquanto PP e PSOE descem a mínimos históricos. Vemos o crescimento da Frente Nacional em França após a débâcle “Holande”, ou a subida do UKIP no Reino Unido da aliança tory-liberals…. Dinâmicas que se tornarão incontornáveis aquando das Europeias do próximo ano. Já deu para perceber que o centro vai esvaziar-se e que os beneficiários disso serão diferentes. Conforme os locais e os contextos poderá ser a Esquerda “radical”, a extrema-direita, ou novas formações políticas, todas estas forças terão em comum o facto de serem apelidadas de “populistas” pela oligarquia

Em Portugal será a Esquerda a beneficiar, pelo menos a curto-médio prazo. Quando digo Esquerda refiro-me especificamente ao PCP e às novas formações que estão a surgir. A escala que este fenómeno irá tomar e as suas consequências concretas irão depender de muitos factores…

Irá a Esquerda convergir de forma mais ou menos suave, irá conseguir o pleno dissidentes/alegristas do PS+BE+PCP+Livre+3D+alguma extrema esquerda? Irá esse desejo de convergência diluir-se num acordo com uma direcção do PS que é parte do problema e nunca será parte da solução? Que impacto terá um Rio+Pacheco à frente do PSD, que intensidade terá a renovação e necessária purga no PSD? Qual a intensidade da luta social? Como será a situação económica?  São muitas variáveis… mas é certo e sabido que mais para um lado ou para o outro, o PCP e as novas forças à Esquerda irão capitalizar muito do descontentamento que por aí circula. É também certo que a direita vai levar uma grande paulada e o PS vai continuar mais ou menos onde está, havendo grandes hipóteses de se romper se ganhar as próximas eleições legislativas e formar um governo de bloco central…

Parece que certas lições estão a ser apreendidas. A luta deve ser travada para confrontar, ter efeitos concretos e triunfar. 

Ao contrário do que se passou em 2012, ano que encerrou com a luta em refluxo após o 14 de Novembro, em 2013 o ano parece ter encerrado com a luta num ascenso. Um ascenso que é quantitativo, mas também qualitativo.

O final de 2013 dá nos vários exemplos, a diferentes escalas e de diferentes formas, de que certos sindicatos e movimentos estão a perceber e implementar formas de luta consequentes. Ou seja, a luta está a ir para lá do ritual e demonstrativo. A luta está a ser travada de forma a confrontar explicitamente o governo e seus agentes, está a ser travada de forma a obstaculizar efectivamente a acção governativa e está a tornar-se imprevisível. Isto foi visível, a diferentes níveis, nos protestos a 26 de Novembro, na manifestação da polícia, no boicote e cerco montado pelos professores, no protesto do cabaz de natal do pingo doce, nas greves das finança ou do lixo.

Esta é uma tendência que é de apoiar ao máximo. Parece que a fase do protesto ritual e demonstrativo, pacato, previsível e inócuo está a ser ultrapassado, finalmente está a chegar-se à conclusão que a luta deve ter objectivos concretos e deve ser travada para ganhar. É preciso protestar nos sítios onde eles estão, interromper os seus discursos e reuniões, é preciso impedir a implementação das suas políticas no terreno e no concreto. É preciso fazer o que eles não estão à espera, apanhá-los de surpresa, ser imprevisíveis. É preciso lutar para ganhar, para os derrubar… e isto não pode ser apenas um slogan gritado numa marcha, tem de ser uma palavra de ordem para por em prática, aplicando os métodos que forem necessários para que se concretize!

Reconfigurações nos Movimentos

Desde pelo menos 2010 que há diversos novos actores no palco da luta social, aquilo a que de forma bastante grosseira aqui fui chamando de “constelação indignados”. Em 2013, na sequência da histórica manifestação de 15 de Setembro e do “outono quente” de 2012, a actividade de todos estes grupos foi muito balizada pela hegemonia que o “qslt” atingiu ao federar a maior parte deles. É um fenómeno que me parece difícil de se repetir em 2014. Não estou a dizer que o “qslt” irá desaparecer, não estou a dizer que não desempenhou, em vários aspectos e momentos, um papel extremamente positivo. Mas basta fazer uma leitura da sequência de eventos em 2013 para perceber que a fórmula esgotou-se… O auge da hegemonia e controlo do “qslt” a 26 de Outubro conduziu o movimento a uma espécie de “beco sem saída”, que marca também o fim do seu predomínio sobre a “constelação”…

O espaço “qslt” continua a ter alguma validade, mas está algo limitado. Perdeu-se o factor novidade e surpresa que nunca mais poderá ser recuperado. Criaram-se vícios, rotinas e expectativas quanto ao tipo e dimensão dos protestos… Para a luta extra-sindical ter algum impacto em 2014 é importante o contributo das várias das componentes da “constelação indignados”… ora, para que essa luta seja moralizadora, combativa e alastre não pode estar refém dos calendários e rotinas do “qslt”.

Parece-me fundamental que surjam novas dinâmicas e ocorram algumas reconfigurações, dinâmicas essas que terão de ser forjadas na própria luta e em torno de acções concretas. Uma manifestação que moralize não precisa de contar com milhões, um protesto consequente não implica que se fique semanas a viver à chuva num acampamento improvisado. Há muito que já se fez e demonstra isso mesmo, basta rever a lista do que de relevante aconteceu em 2013 para encontrar alguns exemplos… Parece-me que em 2014 não faltarão pretextos e vontades, haja o mínimo de lucidez e boa vontade, para que se organizem uma série de protestos que consigam ir criando tracção, metendo paus na engrenagem, moralizando os activistas e preparando o terreno para as grandes batalhas que também irão ter lugar.

O Imprevisível é provável

Sobretudo nesta fase histórica, o imprevisível é muito provável. Não podemos descartar a hipótese de explodirem protestos e conflitos onde não esperamos, iniciados por quem não seria previsível e por razões que não parecem as mais expectáveis.

Para que estas explosões algo espontâneas causem o máximo impacto e possam servir de detonador a mais vastas movimentações, será muito importante os movimentos, activistas e organizações estarem minimamente preparados para aproveitar o momento. É preciso que se consigam tomar decisões e desencadear acções rapidamente após a surpresa inicial, tem de haver canais que permitam a comunicação entre diferentes sectores, os activistas devem estar minimamente moralizados e motivados, é bom que exista a experiência recente de pequenas batalhas moralizadoras onde se obtenham vitórias, mesmo que pequenas ou simbólicas.

Last but not least, é preciso não ter medo da revolução e da violência social dos explorados. É que sempre que se fala disso nos mass media, é como se fosse um monstro assustador que se não tivermos cuidado ainda se solta e causa um grande estrago… muita esquerda, mesmo que se diz “radical” compra este discurso. Ora o “monstro à solta” é o que agora temos, o que precisamos, aquilo que é necessário, mesmo sabendo que existirão episódios contraditórios, é de uma violenta fúria popular que varra os sociopatas do poder. Não há que ter medo disso, antes pelo contrário…

Momentos decisivos

Há momentos e locais mais decisivos que outros. Em 2013, aquando da crise política de Julho, houve uma grande falha do movimento que não soube ou não foi capaz de estar à altura. É preciso corrigir isso e perceber que certos momentos são, de facto, cruciais.

Em 2014 os meses de Abril a Junho serão decisivos. Nessa altura serão tomadas as decisões relativas ao segundo programa de saque. As manobras de propaganda e a chantagem irão atingir proporções épicas, mas também é provável que a classe dominante mostre divisões, posturas contraditórias e o nível de confusão no topo seja muito elevado. É uma altura em que será preciso sangue frio e muita determinação, quanto mais pressão popular existir, quanto maiores e mais determinados forem os protestos melhor.

O 25 de Abril (os tais 40 anos…) e o 1º de Maio são datas marcadas com desfiles garantidos, era necessário que esses desfiles se transformassem em marchas de combate que conduzissem a luta até locais com sentido… um exemplo entre muitos possíveis, daquilo que será necessário.

Se o governo não for derrubado em 2014, então não será derrubado e cumprirá todo o seu mandato… prosseguirá a sua política de devastação e será ele a negociar o segundo programa de saque com a Troika… teremos a cristalização de uma série de decisões e relações sociais, a barbárie e miséria bem cravadas na sociedade portuguesa… e depois? Depois teremos um governo de bloco central que veremos quanto dura… um governo que irá actuar de forma bem diferente consoante o governo actual chegue ao fim ou seja derrubado.

Por tudo isto a tarefa central e prioritária de 2014 é o derrube deste governo de inimigos do Povo e traidores à Pátria. 

2014, vamos a ele!

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33 respostas a 2013, um ano de luta social em análise

  1. Gambino diz:

    A estratégia de comunicação do stablishment para conter a luta social:
    Ontem, a propósito do novo saque aos pensionistas, a SIC Notícias convidou dois apologistas da austeridade, um deles era o inenarrável Henrique Monteiro, e a RTP Informação apostou nos talentos mediáticos de Camilo Lourenço para dar baile a alguns sindicalistas.
    Tem sido esta a estratégia a utilizada pelos meios de comunicação sempre que o governo anuncia mais um pacote de austeridade. O triunfo do discurso cansado dos paladinos da inevitável austeridade assenta no apoio dos media tradicionais e na fraqueza bem-intencionada dos que são convidados para debater com eles.

    • Francisco diz:

      “na fraqueza bem-intencionada dos que são convidados para debater com eles”
      Infelizmente tens toda a razão… já por várias vezes desesperei ao assistir a debates desse tipo… E não sei o que me deixa mais irritado, se a arrogância, agressividade e falta de vergonha na cara dos lacaios do governo, ou se a fraqueza, falta de fibra e pobreza intelectual dos seus oponentes…

      • O problema é que os representantes de movimentos sociais e até de sindicatos caiam na esparrela de responder a questões técnicas do fôro económico-financeiro em vez de remeter para os governantes a forma de resolver tecnicamente os problemas político-sociais.
        Aqueles movimentos deveriam fazer as denúncias e exigências pertinentes e exigir que o governo resolva ele os problemas… ou dê lugar a outro.

      • De diz:

        Os “convites” não são nem inocentes nem às cegas…

  2. O que é que é isso da extrema-direita soft? Soft, é isso e chamarem de direita ao psd ps e cds. Ou partidos do centro.

    • Francisco diz:

      Foi uma muleta para classificar o ukip britânico… apesar de tudo, há uma diferença entre partidos como o ukip e o Holandês “partido da liberdade” por um lado, e por outro lado a extrema-direita “dura” exemplificada pela Aurora Dourada Grega ou o Jobbik da Hungria.

      • ou os governos: Grego, Português, Espanhol… alguns movimentos oficiais nazis e fascistas só ficam chateados porque não pescam nada, mas os governos fazem-lhes a papinha toda.

  3. Achas mesmo que a saída do Relvas foi uma coisa significativa?

    • Francisco diz:

      Sim, lê o link com o artigo que na altura escrevi.
      A Esquerda tem muitos vícios, dois deles são o ignorar e desvalorizar as suas próprias vitórias, outro é desvalorizar o ataque aos agentes em específico que executam as políticas.
      O “sistema” e o “capitalismo” não são abstracções, são uma realidade concreta e têm protagonistas com rostos, sejam eles indivíduos ou instituições. Para mim ainda mais básico do que achar que o “sistema” vai ao ar porque um ou uns quantos indivíduos/instituições seus protagonistas vão ao ar é achar que sem os “mandar ao ar” é possível derrotar esse “sistema”.

      • Nesse ponto de vista, pode-se ver como uma victória. Mas mesmo assim considero pouco. Até porque eu penso que nos falta tanta coragem como os comunistas, anarquistas, e outros que lutaram contra salazar, caetano e quem abriu as portas a esse regime. Claro está que as técnicas deles são outras, mas logo ai não estamos a aprender grande coisa, para que possamos responder-lhes da mesma forma.

  4. Oh pá, desculpa ir às mijinhas, mas é enquanto vou lento, e assim não me esqueço. Do assalto à ponte, esse fatídico dia para esses manifestantes que provaram um pouco das antigas técnicas pidescas. Quero dizer que foi um acto bonito, ainda que tenha ficado isolado nas lutas gerais seguintes, e peca um bocado por ingenuidade, mas mais vale fazer-se, experimentar-se, do que se andar só nas típicas manifestações da CGTP que não se desenvolve, não se desalinha, não progride, não desenvolve…

  5. No ponto a seguir falas da grandiosa “”””””””””””””derrota””””””””””””””” do psd, eles não perdem nos objectivos, nem nas políticas, pronto, não ficam à frente da câmara, mas está lá o ps para destruir por eles.

  6. Houve 50 vezes mais manifestações felizmente, e greves e outras iniciativas. Mas têm e devem ser mais duradouras, de ir mais longe.

  7. Revolução, revolução, revolução, só a de 25 de Novembro é que resultou, 50 anos de fascismo na cabeça das pessoas não se muda assim do nada. E por isso é que embora haja muito mais manifestações, se fores a eleições levas outra vez na tacarreta com o ps a ganhar de novo, e o que é o ps senão um partido com liderança fascista, tal com o psd e o cds! Pois revolução. Isso queremos nós, mas na cabeça das pessoas, na cultura, na cidadania, sociedade… política.

    • Francisco diz:

      Acho que isso é uma visão muito simplista e moralista do processo histórico. Mas percebo onde queres chegar.

      • Por que é que achas que é moralista e simplista?

        • Francisco diz:

          Isso é uma grande discussão lê alguns dos meus posts mais de análise e dá pa entender. Por exemplo, sem um 25 de Abril não haveria um 25 de Novembro, logo dizer que o 25 de Novembro foi a única revolução é uma simplificação grosseira do processo histórico (e terá sido, mesmo uma contra revolução, mas então antes houve uma revolução?)

          • Pronto o 25 de Abril foi uma Revolução que não resultou, sim por causa da contrarevolução, e pela enorme ingenuidade por parte de todos os envolvidos na luta até então.

        • Francisco diz:

          E moralistas quando começas a dizer que o povo é isto e aquilo e que antes era isto e aquilo, é uma visão moralista do processo histórico que me parece de uma relevância limitada para uma análise baseada no materialismo dialéctico

  8. Desculpa não concordar contigo quando falas primeiro de direita, logo ai não concordo que cds e pds são de extrema-direita, e não teres incluido o ps nesse grupo, pois o ps é a base total de apoio do governo.

    • Livre e 3D são mais dois partidos podres, até pelos nomes que ostentam, mas é curioso que quando o ps está em queda, porém mantém-se na liderança, aparecem esses dois partidos, e no momento em que o PCP subiu muito e o Bloco está quase apagado. E PS + BE + PCP é pura ilusão, o PCP não se iria coligar com quem tem traído o povo e destruído tanta coisa…

      • Francisco diz:

        Não sei de que tás a falar, mas n é do que está no texto. E ilusão é pensar que o PC o BE ou quem quer que seja isolado na Esquerda Portuguesa consiga efectivamente inverter este processo e fazer uma nova revolução, ou pelo menos introduzir umas quantas reformas decentes

    • Francisco diz:

      E quando falei do PS não disse que eram Colaboracionistas e capitulacionistas? aliás no texto delimitei o que quero dizer com Esquerda e inclui alguns sectores que estão no PS, mas não o PS enquanto organização e instituição.

  9. A manifestação de 26 de Outubro foi aquela em que eles foram pedir autorização para ir lutar, perdão ir à escadaria?

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