Separar as águas

“Se sabe que a moção de censura se dirige ao Governo, porque se mete no meio? Parece que gosta de levar na cabeça”

Heloísa Apolónia

 

A crise política iniciada em princípios de Julho com a demissão de Vítor Gaspar e sucedida pelo abandono “irrevogável” de Paulo Portas não gerou somente um dos episódios mais soturnos e inenarráveis desta República. Teve igualmente o condão de encetar uma clarificação de posições relativa à solução para a situação económica e financeira. Na verdade, começa a desenhar-se aquele que será o posicionamento futuro dos partidos no contexto de eleições legislativas. Talvez a maior dúvida seja o PS, visto ter um programa que parece incompatível com os dois lados do espectro político parlamentar.

O Partido Socialista rompeu o compromisso de salvação nacional. Ficou por saber se os próprios líderes do PSD e CDS-PP não fizeram mais por isso que o próprio António José Seguro no intuito de prosseguirem a remodelação. No entanto, outras questões emergem após a leitura das propostas dos três partidos. Afinal de contas, qual é a estratégia do maior partido da oposição?

Nem a renegociação do memorando nem os seus termos parecem ter sido fonte de desentendimento. Aliás, ficou claro que os partidos do governo pretendem a participação do PS na mesa de negociações com a Troika. Com efeito, os signatários do memorando concordam com o Tratado Orçamental, assim como a negociação de uma outra trajectória para os objectivos do défice e da dívida pública.  Pela leitura que tive a oportunidade de fazer de todos os documentos, parece-me que a grande divisão se deveu à reforma do Estado que contempla o corte de 4,7 mil milhões de euros. Não que o PS discorde da necessidade desse ajustamento, mas pelo facto de se opor ao corte nas pensões e ao programa de requalificação e mobilidade da Administração Pública, i.e. despedimentos. Não deixa de ser curioso que, ainda assim, a coligação se mostrou disposta a negociar essas medidas. E devo dizer que, sinceramente, fico com a sensação de que era possível chegar a um acordo com algumas cedências de parte a parte. Então o que falhou? Acima de tudo existiu tacticismo: 1) O PS não quis ficar associado a um governo a prazo e a uma austeridade que ainda abalará os bolsos da população, preferindo um maior desgaste do governo para capitalizar mais preferência eleitoral; 2) O líder do PS assume na sua moção de estratégia e no seu documento de diálogo com vista ao compromisso de salvação nacional que pretende governar com maioria absoluta e/ou pela via dos acordos de incidência parlamentar. Pretende ser a via média.

Observamos então o panorama político com limpidez. O BE e o PCP, apesar de diferenças como o papel de Portugal na União Europeia e na moeda única, convergem na necessidade de reestruturação da dívida de modo a ganhar margem para o crescimento económico, investimento e recuperação do Estado Social e sector público; o PSD e o CDS-PP convergem na mera renegociação do memorando através de toques cosméticos nos juros e na flexibilização das metas do défice, visando obter permissão da Europa para crescer pela via das exportações e internacionalização da economia. O Partido Socialista quer os dois. Quer renegociar o memorando, quer respeitar o Tratado Orçamental Europeu e quer estimular a procura interna com investimento e aumento das prestações sociais, além de pretender soluções que dependem bem mais do bom-humor de Angela Merkel do que do seu governo. É que se António José Seguro pretende uma aliança europeia contra a austeridade, uma mutualização da dívida ou um Banco de Fomento, então precisa de força negocial, necessita de parceiros. Não me parece que um executivo minoritário tenha essa capacidade. E vai aliar-se com a direita do memorando ou com a esquerda da reestruturação da dívida? Para sabê-lo, a direcção nacional do PS tem de responder apenas a duas perguntas. A dívida é pagável? Não. É possível crescer em sintonia com austeridade? Não. Qualquer propaganda que vá para além disto, é para Gaspar ver.

Ver três documentos relativos ao compromisso de salvação nacional: PS, PSD e CDS-PP

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13 respostas a Separar as águas

  1. Rocha diz:

    O PS não quer nada disso. O PS quer, como sempre fez aliás desde a sua fundação, mentir aos portugueses, mentir descaradamente fazendo promessas que não irá cumprir enquanto cumpre obedientemente as ordens dos seus amos da Troika, do grupo Bilderberg, do patronato e dos banqueiros, que convergem para submeter o povo português à escravatura e colonização.

    • João diz:

      Pois, na verdade é só isso, ou, dito de outro modo, é tudo isso. Talvez o primeiro elemento a considerar seja a necessidade de, de uma vez por todas – e sabendo-se bem os riscos que isso comporta – eliminar qualquer ligação de sinonímia entre a sigla PS e o conceito de esquerda. Os de esquerda bem insistem em os chamar, mas é escusado: os seus amos não os deixam vir. Talvez seja o tempo de os ir abandonando à sua sorte. Ainda têm eleitores? Ainda têm toda a comunicação social? Ainda têm o dinheiro dos capitalistas a quem interessa a permanente disponibilidade de um plano B? Pois, terão tudo isso, mas terão também as contradições internas inerentes a qualquer fenómeno de hibridismo e terão a pesar-lhes nos ombros o escrutínio da clarificação, que é de tudo o que mais os assusta.

  2. Pingback: cinco dias

  3. miguel serras pereira diz:

    Caro Frederico Aleixo,

    retomo aqui quase na íntegra o que escrevi a partir deste seu post no Vias de Facto (cf. http://viasfacto.blogspot.pt/2013/07/que-alianca-europeia-contra-austeridade.html).

    “É que se António José Seguro pretende uma aliança europeia contra a austeridade, uma mutualização da dívida ou um Banco de Fomento, então precisa de força negocial, necessita de parceiros”. Há aqui vários problemas: o primeiro é o da vontade do PS não ter, nem merecer, qualquer credibilidade. O segundo é que, ainda que o PS estivesse empenhado numa “aliança europeia” contra a austeridade, ser-lhe-ia impossível ter nisso por parceiro uma força como o PCP que declara explicitamente entre os seus objectivos políticos a desagregação da UE. O terceiro é a indefinição do BE que, em matéria europeia, parece querer guardar o bolo e comê-lo: guardar o euro e recusar as condições políticas de uma integração fiscal, orçamental e no plano dos direitos e liberdades constitucionais que lhe daria sentido.
    Estes três problemas — como os Três Mosqueteiros — são quatro. O último, mas de certo modo prévio, é o seguinte: embora não possa ignorar ou alhear-se do que se passa na cena política oficial, uma aliança europeia contra a austeridade depende sobretudo do desenvolvimento de movimentos e iniciativas de base, nas ruas, nas empresas, um pouco por toda a parte, que sejam capazes de travar a ofensiva oligárquica e de contra-atacar, criando ao mesmo tempo formas de intervenção política democráticas auto-organizadas e marcando presença num espaço público, de deliberação e decisão, redefinido e alargado pela dinâmica das suas acções. Creio que é por aqui que passa o “separar das águas” a partir do qual poderemos analisar melhor quais os possíveis parceiros da democratização.

    Saudações democráticas

    msp

    • Frederico Aleixo diz:

      Caro Miguel Serras Pereira,

      As questões que coloca são bastante pertinentes. E concordo que vários são os obstáculos para um entendimento. Até digo mais: prefiro um não-entendimento a um entendimento que contemple cedências à estratégia europeia.

      E o seu texto até, porventura, dará azo a outra reflexão. Mesmo colocando de parte o PS, qualquer solução à esquerda implica uma tomada de posição firme contra Bruxelas. Ora, o BE e o PCP necessitam de conversar sobre esta temática porque não basta debaterem pontos de vista convergentes a nível interno. Necessitam de concertar uma estratégia de acção face à Europa.

      E aqui entramos num outro ponto. Eu concordo inteiramente que a sinergia à esquerda não passa apenas pelo parlamento. É necessário uma maioria social que apoie um futuro processo que se avizinha duro. É necessário construir pontes com os movimentos sociais, os sindicatos e outras organizações de base. Que se multipliquem! Na verdade, como bem indica, a aliança contra a austeridade deve começar nas ruas, nas empresas, nas fábricas, nos desempregados, etc.

      Cumprimentos

    • De diz:

      Não,não é de todo crível que o separar das águas passe por uma aliança europeia contra a austeridade. E ainda menos assente no desenvolvimento fantasmagórico de “movimentos e iniciativas de base” que sejam capazes de.
      Sejamos claros.Todos os movimentos que permitam unir esforços e forças a nível das massas trabalhadoras da europa são bem-vindos. Espanta ( ou talvez não) o facto que a nível institucional os governos sob pressão troiksita não tenham encetado processos de contestação comum face aos ditames da dita troika. Mas o que é hoje claro é que os processos de contestação interna estão em fases diferentes e são atravessados por contradições e processos de luta diferentes e específicos.
      O sonhar com a unificação das lutas a nível europeu é apenas um pretexto para nada se fazer.Tal como o convocar movimentos de base inorgânicos e pouco claros é o reconhecimento da vacuidade das propostas de alguns,como se fosse possível partir do zero e ignorando a força organizada dos movimentos em confronto.Mais uma vez sejamos claros que tal não impede ,antes pelo contrário, a necessidade de mobilização de todos, com os contributos de todos,organizados ou não, com vista a. E, desculpe-se a frontalidade, de facto a organização permite uma resposta qualitativamente diferente
      Se num dos países da europa da periferia fosse possível inverter as coisas tal teria sim um efeito mobilizador de todo não negligenciável nos restantes países europeus.
      Mas é a nós que cabe tomar nas mãos e assumir as nossas responsabilidades.

      Um último pormenor sobre a mistificação pelo menos num dos três problemas citados: “o PCP que declara explicitamente entre os seus objectivos políticos a desagregação da UE”… é uma frase que merece reservas. e que merecia ser esquadrinhada para avaliar o seu verdadeiro significado em aparecer assim desta forma tão (im)precisa.

      De facto as opções levantadas pelo Frederico Aleixo contextualizam as convergências e divergências das forças em presença.E fazem-no de uma forma notável

  4. De diz:

    Há uma questão levantada pelo Victor Dias que me parede de todo pertinente: o contador a zero com que vão tentar mascarar e ocultar a face da governação do PSD/PP
    http://otempodascerejas2.blogspot.pt/2013/07/e-so-que-falta.html#comment-form

    O não deixar espaço de manobra para passar tal desiderato deve ser preocupação de todos nós.No fundo nada recomeçou.No fundo o processo continua a evoluir de acordo com o pretendido pela troika e pelos revanchistas que nos governam. No fundo não devemos aceitar como irreversíveis tudo o que esta governação fez no que diz respeito à ofensiva do Capital sobre o trabalho.E isso pode ser mobilizador para plataformas comuns e pontes a estabelecer com os que foram e continuam a ser esmagados por esta política de terror

    • Frederico Aleixo diz:

      Tive a ler e sem dúvida que esta sátira tem toda a razão de ser. A propaganda do regime agora quererá anunciar uma nova era, um novo ciclo para o qual se prepararam nos últimos dois anos. Aliás, esqueçam os dois primeiros anos, eles estavam só a aquecer. Agora é que verão uma coligação com uma nova face e um novo rumo. Acrescente-se a venda de sonhos e a fachada de diálogo com parceiros sociais e PS para compor o bouquet.

      Vem aí o pós-troika. Os vossos esforços serão recompensados! A crise do Euro acabou.

  5. miguel serras pereira diz:

    De,

    os movimentos de base só são inorgânicos enquanto não se auto-organizam ou não assumem o governo de si próprios. V. parece ter um certo fetichismo da representação (senão parlamentar, pelo menos “histórica” ou “vanguardista) e subestimar a natureza antidemocrática, de raiz classista, da distinção entre representantes e representados, que mais não faz do que reproduzir a hierarquia entre governantes e governados (seja na cena política em sentido estrito, seja no plano politicamente decisivo da actividade “económica”). E todavia, não devia escapar-lhe a diferença abissal ou a contradição antagónica que há entre um governo de representantes dos trabalhadores e um governo exercido através da participação igualitária, regular e responsável dos “produtores associados” e da grande maioria das mulheres e homens comuns, como eles hoje expropriados e menorizados.
    Quanto à “aliança europeia contra a austeridade”, não só não é contrária à necessidade de acção local em benefício da maioria dos portugueses, como a expandirá e reforçará, na medida em que seja assumida nas lutas presentes. A mudança de relação de forças na Europa não é indiferente à mudança de relação de forças em Portugal – e vice-versa. O isolacionismo enfraquece a democratização e reforça a oligarquia governante tanto lá como cá, e é contrário aos interesses tanto imediatos como a longo prazo da maioria da população da região portuguesa.

    msp

    • De diz:

      O primeiro parágrafo é um exercício de estilo dirigido a outras representações, como que a responder ao que já foi respondido antes ou a discussões temáticas redondas e laterais.Ou seja,escritos noutras areias que não as que se movem agora.Espero que esta resposta baste,porque sinceramente não quero ir agora por caminhos nem mais duros nem mais demagógicos.Nem sobretudo desviar-me do que tenho por essencial.

      Quanto ao segundo parágrafo, desculpe mas o que eu disse não contraria em nada o que diz neste parágrafo.
      É um facto que digo mais.Qualitativamente mais, também é outro facto.Mas não nego a importância das alianças europeias.e das modificações que podem acarretar mudanças qualitativas no panorama actual.Ora leia lá de novo

      • miguel serras pereira diz:

        De,
        confesso que leio e releio o seu primeiro parágrafo sem (quase) nada compreender. Não sei de que “outras representações” V. fala, nem a que “discussões temáticas redondas e laterais” se refere, nem qual o seu propósito ao dizer “não quero ir agora por caminhos nem mais duros nem mais demagógicos”. Mas, deixe lá, o problema há-de ser meu, e, longe de mim, pretender forçá-lo a “desviar-me do que tenho por essencial”.
        Já quando V. escreve: “desculpe, mas o que eu disse não contraria em nada o que diz neste [o segundo] parágrafo”, fico extremamente satisfeito com o que leio e compreendo. É só o seu “desculpe” que está “qualitativamente” a mais: quando debato com alguém o que procuro, em primeiro lugar, não é levar a melhor, mas esclarecer uma questão. E, “leia lá de novo” também V. Se o fizer, verá que eu não escrevi propriamente para o contrariar e que o seu acordo de princípio muito me apraz.

        msp

        • De diz:

          Parece mesmo que o problema é mesmo seu. Ou se quiser é meu e assumo o motivo porque não quero ir por aí.
          As pistas estão lançadas. O senhor não é virgem nem nos argumentos que cita nem nos argumentos que lê como resposta. Mesmo aqui no 5 dias, sem precisarmos de irmos a blogs mais duvidosos ( e não me refiro aquele em que participa regularmente) as conversas sobre “representações parlamentares,governos representativos, governos de participação igualitária,produtores associados etc e tal.cresceram e multiplicaram-se. A questão do Estado é uma questão central mas agora não é o momento para a retomar aqui.Já bastam as desonestidades maiores ou menores que polvilham os comentários de alguns comentadores sobre tais assuntos.E desculpe que lhe diga ( mais uma vez) não é por aí que me interessa agora ir
          Daí que não vale a pena fazer figuras de,qualquer que seja o que se segue à preposição de.

          Ainda bem que não encontra discordâncias de princípio quanto à questão europeia.Posso continuar a subscrever o que eu disse na íntegra e as generalidades que o senhor reafirma
          🙂

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