Esquerda frutada

Um artigo de José Vítor Malheiros, publicado ontem no Público (desculpem lá, não sei onde está o link – se alguém puder colocá-lo nos comentários, ponho-o aqui), e no seguimento de uma entrevista a Rui Tavares no i, sugere que se discuta um novo partido à esquerda. A razão, se a entendo no meio de conjecturas e pressupostos, é esta: há uma reserva de votos à esquerda que é preciso capturar porque há um “povo de esquerda” que não se sente representado pelas forças políticas actualmente na Assembleia da República. Esse “povo de esquerda” é anti-austeritário, diz-se. Esse “povo de esquerda”

Na entrevista a Rui Tavares, refere-se, lá para o meio, o Manifesto por uma Esquerda Livre. Ou Movimento, já não me lembro. O mesmo que procura posicionar-se entre a esquerda mole e a esquerda inconsequente. Não consegui, até hoje, perceber o que é “esquerda mole” e “esquerda inconsequente”. Embora o livro de André Freire e Luke March sobre a esquerda radical dê algumas pistas, e uma entrevista mais ou menos recente do primeiro autor ao i também sugira que o desalinhamento de preferências entre alguns eleitores do Bloco de Esquerda e os seus dirigentes pode criar espaço para um novo partido de esquerda, toda esta conversa peca pela falta de consistência e, pegando no vocabulário inenarrável do Manifesto por uma Esquerda Livre, consequência. Em suma, vemos um conjunto de sugestões, conjecturas e pressupostos que não respondem a três perguntas muito simples:

1. Esse partido quer ser a DIMAR portuguesa? Ou seja, um partido de tendência social-democrata e europeísta?
2. Qual será a sua política de alianças à esquerda e à direita?
3. Qual será o seu relacionamento com a sociedade portuguesa?

Quanto à primeira questão, um partido do género terá de se confrontar com dois problemas: a disfuncionalidade crescente do euro (e não, Rui Tavares não tem razão ao dizer que uma saída do euro obriga a uma saída da União Europeia, embora seja provável que uma coisa aconteça depois da outra) e os novos mecanismos de governo económico europeu, que ilegalizam o keynesianismo, a social-democracia e qualquer pretensão a uma política de pleno emprego. Perguntem ao Paulo Rangel, ele explica. Se Portugal se vir na contingência (voluntária ou involuntária) de abandonar o euro, qual será a atitude do Grupo Spinelli no Parlamento Europeu? Continuarão a abanar as bandeirolas federalistas? Este novo partido será federalista? E já se perguntou ao “povo de esquerda” o que acha do federalismo e do soberanismo? E já se perguntou ao “povo de esquerda” se acha que o problema da democracia representativa é a quantidade insuficiente de partidos?

Quanto à segunda questão, devo estar aqui com um bloqueio. Talvez acorde uns dias mole e outros inconsequente, mas gostaria de perceber para que é que servirá um novo partido à esquerda se a estratégia do Bloco de Esquerda já parece ser a de se aproximar ao Partido Socialista. O novo partido quer meter-se no meio? Por mim, venha a libertinagem, mas conviria saber qual é a probabilidade de ser bem-sucedida, porque a libertinagem política mal-sucedida pode dar confusão. Digo eu. Como é que este partido reagirá se se vir isolado? Vai piscar o olho ao CDS ou a uns quantos meninos mal-comportados do PSD?

A terceira questão tem a ver com isto da libertinagem. Eu também gosto de metáforas tectónicas, mas há aqui qualquer coisa que não bate certo. Por duas coisas. Em primeiro lugar, é fácil andar para aí a falar acerca de abrir os partidos à sociedade, e fazer um monte de propostas com palavras bonitas e agradáveis. Mas seria bom ver como é que a coisa se virá a processar. É que não se percebem quais os interesses potenciais a agregar pelo novo partido. É o eleitorado urbano altamente qualificado? Mas não há uns gajos que já andam a tentar essa praia há mais de uma década? Que outras “alterações tectónicas” se produziram na sociedade portuguesa, nos últimos 25 anos, que não podem ser devidamente representados pelos partidos já existentes? O livro March/Freire não ajuda a vislumbrar grande coisa e não sei exactamente qual a bandeira com que a esquerda não-mole/não-inconsequente pretende congregar o voto do “povo de esquerda”. A ideia pode ser meter tudo na cama e tiram-se as conclusões a seguir.

Dito isto tudo, eu cá acho que o problema é outro, e tem a ver com instituições. Mas isso é conversa de gente inconsequente, parece. Fica para daqui a uns dias, quando a Comissão Europeia decidir que também já não quer fazer parte da troika.

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