Bruno Maçães e o novo ópio dos intelectuais

Em 1955, Raymond Aron publicava um volume intitulado O Ópio dos Intelectuais, onde discutia os três mitos da esquerda (esquerda, revolução e proletariado) e a atracção dos intelectuais franceses pelo marxismo. Era uma crítica liberal à ascensão do pensamento crítico, especialmente marxiano, num contexto muito particular. Para Aron, em termos relativamente grosseiros, o marxismo era uma espécie de ópio dos intelectuais.

(Continuo a preferir as reflexões de Gramsci acerca dos intelectuais orgânicos, mas, para o efeito desta nota, Aron parece mais relevante,)

A posição expressa por Bruno Maçães na Grécia, que lhe valeu o epíteto pueril de “Alemão”, e a reacção do visado ao dito epíteto, levam-me a pensar que vale a pena recuperar a expressão aroniana e aplicá-la aos intelectuais da escola de Maçães, Morgado e Espada. Parece claro, hoje, que o colectivo intelectual neoliberal/ordoliberal português beneficia de uma infraestrutura institucional que passou despercebida durante demasiado tempo. Já escrevi, aqui no 5dias, sobre o trabalho de Philip Mirowski acerca da estruturação desse colectivo nos Estados Unidos e, desde há algum tempo, à escala global. O caso português interessa-nos porque temos, actualmente, intelectuais em posições de força e com capacidade de manusear os aparatos estatais no sentido de produzir o estado natural neoliberal e injectar mercado em todos os cantos obscuros da sociedade. Bruno Maçães é um desses sujeitos. Daniel Oliveira já escreveu sobre o assunto, sem se pronunciar particularmente acerca das estruturas institucionais que permitiram, a estas pessoas e às ideias que defendem com disciplina militar, medrar, consolidar-se e tornarem-se um programa de transformação.

Estas instituições promoveram e promovem o uso de opiáceos intelectuais. Loïc Wacquant e Pierre Bourdieu referiram-se aos mesmos como “razão imperalista” e “pensamento único”, mas, por presciência ou precipitação, não conseguiram demonstrar como essa razão imperialista e virulenta estava vertida em políticas concretas além de algumas considerações acerca do capitalismo neoliberal e dos seus avatares multilaterais, como a OMC, o FMI ou o Banco Mundial. Hoje, vemos essa razão imperialista plasmada em políticas públicas concretas. E vemos como Bruno Maçães, na sua reacção pueril a uma atitude pueril, corporiza o estado cognitivo da direita intelectual portuguesa, a mesma a que já me referi como abandalhada: viciada no ópio intelectual neoliberal, incapaz de demonstrar a superioridade política do seu programa sem recorrer às idiotices reaccionárias identificadas por Hirschman em A Retórica da Reacção (perversidade, futilidade e risco), persistente no erro demonstrado nos termos definida por si própria – a colocação de dívida há poucos dias mostra-o sem margem para dúvidas – e, ainda assim, incapaz de conceber a possibilidade desse erro. Nada que possa admirar quem conhecer os currículos dos doutoramentos no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, no Instituto Superior de Economia e Gestão ou na Nova School of Business. Um doutoramento em estudos políticos como o do IEP, cuja unidade curricular de Filosofia Moral não inclui Ronald Dworkin, HLA Hart, John Rawls ou até Robert Nozick não pode ser outra coisa além de um curso hipnopédico. O consumo de opiáceos intelectuais, associado ao uso de repertórios institucionais que funcionam de acordo com a lógica da verdade dupla – aquilo que vale num contexto pode não valer noutro – aplicada à estratégia revolucionária, resulta num austeritarismo especialmente virulento e conservador. É aquilo que vemos corporizado pela classe de intelectuais orgânicos, como Bruno Maçães, actualmente posicionados em locais fundamentais para o projecto revolucionário do neoliberalismo português. A lógica da verdade dupla – a revolução é má se for de esquerda, mas é boa se for a expressão máxima do mercado – em acção.

A ironia é esta: se fosse alemão, Bruno Maçães seria pragmático e recusaria qualquer violação da ordem constitucional que, como titular de um cargo oficial, jurou defender. Mas Bruno Maçães não é alemão ou pragmático. É mais uma vítima do novo ópio dos intelectuais, convencido de que o seu projecto de classe se traduzirá, a longo prazo, em benefícios irreversíveis. Não será esse o caso. É um dado empírico e epidemiológico.

Um dia, saberemos mais acerca das razões que atraem estes intelectuais ao neoliberalismo. Não podemos cair no erro de considerar essa atracção uma função de estratégias individuais para maximização da utilidade ou de um projecto puro de classe. Há tendências mais pesadas aqui – milenarismos, pensamentos mágicos, teologias e a atracção das seitas, coisas a que os historiadores e os sociólogos da religião têm dado atenção.  Talvez seja por isso que historiadores e sociólogos são eleitos como alvos particularmente atractivos por gente como Camilo Lourenço e Vítor Bento: sabemos no que resulta o consumo de opiáceos intelectuais e também sabemos que os liberais julgam ser imunes a comportamentos políticos aditivos. Quando descobrirem que não são, talvez tenhamos chegado tarde demais.

 

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5 respostas a Bruno Maçães e o novo ópio dos intelectuais

  1. Nuno Cardoso da Silva diz:

    O principal ópio dos intelectuais são as ideologias – quaisquer que elas sejam -, o que é até certo ponto surpreendente. Uma ideologia é uma troca da reflexão pela cartilha, substituindo-se a necessidade de pensar pela adesão a fórmulas quase mágicas que raramente sobreviveriam a uma análise crítica cuidada. O que parece ser o contrário do que um intelectual desejaria fazer. Só a preguiça mental e uma lenta lavagem ao cérebro podem levar pessoas inteligentes a cair nessa armadilha. E nela caem tanto os enamorados do neo-liberalismo como os que se apaixonam pelas mistelas marxistas-leninistas e afins. O que faz com que no nosso país o discurso político e o debate sejam meras trocas de lugares comuns, de manifestações de fé em disparates, e na incapacidade para um pensamento original ou heterodoxo. De uma forma geral já somos hoje menos medíocres do que éramos em finais do século XIX, porque já há muito quem saiba pensar. Mas os políticos e fazedores de opinião sentir-se-iam muito bem nessa época já longínqua… É pena não os podermos mandar para lá…

    • Victor Nogueira diz:

      “O principal ópio dos intelectuais são as ideologias.” A 1ª questão é saber o que para o Nuno é “ideologia” e, independentemente da resposta, perguntar qual “não-ideologia” que “professa”. Mas duma “coisa” poderemos estar seguros: trata-se duma “pessoa”, “livre”, que não cai em “mistelas”, não padece de “preguiça mental” e é demasiado “inteligente” para evitar uma “lenta lavagem ao cérebro” e para cair na armadilha “ideológica”. Um livre-pensador, que duma penada arruma no caixote do lixo todos os incultos e analfabetos pensadores, pelo menos os do século XIX, “urbi et orbi”.”
      Na sua incomensurável modéstia e sapiência, é indubitavelemente um puro, um “iluminati” e desta massa saíram os inquisidores e Pina Manique. Vivesse no Renascimento e seria um Bórgia ?

  2. Mário Estevam diz:

    a ligação entra a seita neoliberal e a opus dei parece-me óbvia.

  3. Pingback: Uma curte – Aventar

  4. Um tiro nos cornos,ainda era pouco diz:

    Uma moca pelos cornos abaixo do alemão.Para causas terroristas ,respostas simples!
    Não se podem queixar,foi o que fizeram ao Gaddafi,logo,é legitimo nesta escumalha….

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