Seja bem-vindo quem vier por bem

Foi anunciado este sábado o processo de criação de um novo partido à esquerda.

Dizem-nos que dará pelo acrónimo de LIVRE. Um acrónimo bem esgalhado e simpático, excepto talvez pela implícita sugestão que deixa: a de que os restantes partidos e os seus membros não o serão. Nada que deva, no entanto, ser encarado pelos outros como uma desconfortável ameaça. Bastará que não projectem (pelas suas práticas e funcionamento interno) razões para que essa imagem recaia sobre si, para que uma tal sugestão implícita se esfume, sem gritos nem azedumes.

Dizem-nos também que o espaço desse  novo partido estará no centro da esquerda, “entre o PS e o PCP e BE“.

Não é um espaço onde me situe ou reveja. É antes o espaço, socialmente significativo, que tantas vezes e durante tanto tempo Álvaro Cunhal repetiu estar vazio de representação partidária, devido ao sistemático encosto do PS à direita. E que volta certamente a estar livre (perdoem-me o involuntário trocadilho) devido à falsa indefinição do PS relativamente àquilo que hoje preocupa a esmagadora maioria das pessoas: a rejeição do memorando e a substituição das políticas a ele associadas, por outras baseadas no respeito pelos direitos, dignidade e condições de vida das pessoas.

Se esse espaço está vago e tende, por defeito, a ser sobretudo capitalizado eleitoralmente pelo PS e/ou pela abstenção, há algumas dúvidas e curiosidades que são suscitadas, para esclarecimento futuro, pelas lacónicas primeiras declarações programáticas.

Por exemplo, em que aspectos é que a desejada «economia mista, com sector público, privado e cooperativo/associativo» (e que já vi ser acusada de «um socialismo capitalista») se diferencia daquela que, com as mesmas características, consta do programa do PCP e da em tempos muito badalada Democracia Avançada no Limiar do séc. XXI.

Ou, sabendo quem leu Marx em vez de manuais de marxismo que a «mercantilização das pessoas» é o ponto de partida tanto para a teorização da mais-valia/exploração quanto para a crítica às várias vertentes da alienação, seria interessante clarificar se a utilização dessa expressão corresponde, conforme parece, a uma posição de recusa e combate contra ambos os fenómenos.

À parte estas curiosidades, que esperemos venham a ter resposta oportuna, justifica-se (olhando de fora, pelos olhos de quem preza e anseia pela constituição de uma plataforma mínima comum da esquerda, contra e em alternativa à lógica austeritária e à destruição do país) referir uma questão importante, por óbvia que seja: que a criação desta nova força partidária tanto poderá vir a propiciar uma ponte de diálogo como uma maior fragmentação. Tanto esse potencial como esse risco resultam, afinal, do facto de o espaço político-sociológico que pretendem ocupar existir e ser relevante, de a sua eventual tradução em votos poder suscitar reacções díspares (dos próprios e dos restantes) e de ser evidentemente ridículo retratar quem se situe nesse espaço e o pretenda ocupar como PêÉsses envergonhados, por esse partido não ser cool.

Se o resultado for uma maior fragmentação, ou se o tal LIVRE se vier a revelar irrelevante, lamentá-lo-ei. Mas, afinal, não só é total e completa a legitimidade de criar partidos, por parte de quem não se reveja nos existentes e pretenda intervir politicamente sob essa forma, como não é monopólio dos partidos já existentes o direito à asneira e ao desrespeito pelas aspirações populares (com e sem partido) à construção de uma alternativa comum e concertada que derrote as insustentáveis políticas presentes.

Também à parte das curiosidades que há pouco expressei, pelo menos uma vantagem é expectável da criação desse partido. Vindo o Rui Tavares a levantar publicamente, desde há muito, diversas questões sobre a qualidade da democracia, a UE e a nossa relação com ela (questões que, discorde-se ou concorde-se com as suas posições, são relevantes e merecem ser discutidas, embora a isso fujam os partidos existentes, por tacticismo ou desconforto), é provável que elas venham a ser objecto do discurso desse novo partido e que, com isso, não haja como não discuti-las. E, atrás delas, outras. Nesta fase de paradoxal enquistamento dos partidos de esquerda sobre si próprios e de ainda mais paradoxal business as usual, talvez só isso já valha a pena.

Um sinal dessa possibilidade é, por exemplo, este post de Francisco Louçã. É verdade que se trata de um texto de uma violência que parece resultar de desconforto, fragilizando-o, e com argumentos a que temo faltem, por vezes, o alinhavo e o desejável grau de pertinência. Mas é um começo.

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33 respostas a Seja bem-vindo quem vier por bem

  1. Argala diz:

    Trancrevo o que escrevi em baixo:

    Quando eu digo que os comunistas não têm qualquer possibilidade de ganhar eleições, referi-mo a isto. Não alimentem mais ilusões, estes tipos são mesmo bons nisto. Vão ouvir o Rui Tavares a encantar multidões com a sua desenvoltura!

    A operação de marketing que está aqui a ser montada é absolutamente genial. Isto vem nos manuais: como forma de evitar sustos, o LIVRE servirá, como já foi referido, para amortecer a polarização eleitoral, criando uma ante-câmara que absorverá a fuga de votos para a esquerda. Será a charneira entre figurões como Ana Gomes, Inês de Medeiros, Isabel Moreira (omo lava mais branco) e outros como o Rui Tavares e malta que creio ser da PXXI (até escribas deste blogue vão lá emprestar a cara). Esta gente estará sentada no parlamento e servirá para o queijo limiano em situações de aperto.

    Agora é só catapultar a papoila para o estrelato mediático e está pronto a servir.

    Muitos parabéns à burguesia, uma classe de bons alunos, que faz o respectivo TPC, comme il faut. E ganha na luta de classes sem espinhas.

    Cumprimentos

  2. Nuno Cardoso da Silva diz:

    Paulo, aqui está um comentário que merece toda a simpatia e que traduz preocupações muito legítimas. Por isso só quero referir um ponto:

    “… em que aspectos é que a desejada «economia mista, com sector público, privado e cooperativo/associativo» (…) se diferencia daquela que, com as mesmas características, consta do programa do PCP e da em tempos muito badalada Democracia Avançada no Limiar do séc. XXI…”

    A diferença, espero eu, é que nós queremos mesmo que seja assim, e não o dizemos apenas por questões de táctica ou de marketing político. E devo até dizer que, para mim, o papel do sector público deve ser muitíssimo limitado, e o sector privado deveria limitar-se a empresas que, pela sua (pequena) dimensão, não pudessem incluir-se no sector cooperativo. Mas essa é a minha visão pessoal. As contradições entre o capital e o trabalho só poderão desaparecer quando os dois factores se confundirem nas mesmas pessoas. E por isso não vejo com bons olhos que algumas empresas escapem a esse modelo cooperativo. Mas admito que algumas funções possam melhor ser desempenhadas no quadro público, desde que muito bem controlado.

    • paulogranjo diz:

      Confesso que a minha pergunta se dirigia menos aos próprios do que aos comentários jocosos que esquecem os próprios documentos essenciais que partilham.

      Isto, sem que deixe de parecer interessante saber qual o modelo de sociedade ideal que um partido partilhe – num grau pelo menos menos vago que o estratégico silêncio do BE acerca do assunto.

      E isto, também, sem que deixe de considerar que o principal drama político estratégico da esquerda revolucionária (rótulo impreciso, sob o qual talvez não se reconheça – e estará no seu direito, tal como no de se reconhecer) nos últimos 27 anos é não ter investido na construção colectiva, e transversal às suas diferenças internas, de uma visão de sociedade ideal, face ao esvaziamento dos modelos anteriores.

      Ou sem que perca a consciência de que, numa fase em que é aceleradamente construida a miséria e o reforço e generalização da indignidade da existência dos cidadãos, as divergências entre querer-se um futuro socialismo mais assim ou mais assado, com mais deste ou daquele sector ou sem algum deles (ou, mesmo, querer-se apenas um capitalismo com direitos e estado sociais), não são propriamente a questão, ou o objecto de acção, mais urgentes.

      Nesse sentido, algumas divergências que, no meio das minhas próprias dúvidas, detecto com aquilo que escreveu, até no que respeita à relação entre capital e trabalho) até poderão ser relevantes; mas não são pertinentes num momento como este.

  3. anon diz:

    Resta referir que já existia um partido a ocupar esse espaço politico, o PTP.

  4. Bento diz:

    1 Quando o PCP e alvaro cunhal disseram que havia um espaço para preencher estávamos em pleno governo do bloco central. Conseguem ver a diferença ? Também nao explico mais pois nao tenho paciência.

    2 sistema de economia mista e democracia avançada. Quer o novo agrupamento nacionalizar bancos, sectores estratégicos como a energia, telecomunicações , transportes , seguradoras, etc?
    Conseguem ver a diferença? Também nao explico. Não tenho paciência para charlatões a procura de ganhar a vidinha.

    • paulogranjo diz:

      1. A sua memória poderá ser curta e selectiva, mas essa tese começou a ser levantada muito antes do governo de bloco central e voltou a ser retomada já depois da implosão do PRD. Aliás, relativamente a um “nicho de mercado” particular, foi até objecto de um grande investimento de esforços, com a criação do PEV.

      2. O que é que os homens defendem que seja incluído no sector público da economia, cabe-lhes a eles esclarecer. Eu, estando de fora, não sei; e duvido que você saiba, fora da sensação de omnisciência que os estereotipos sempre fornecem. Mas ridicularizar, como quinta-essência do capitulacionismo, uma frase que, na sua formulação lacónica, podia referir-se ao programa do PCP implica um razoável grau de desatenção, pelo menos por parte de quem se identifique com esse partido. É claro que, se a graçola fosse escrita por co-bloguistas que acreditam que os comunistas comem revoluções criancinhas ao pequeno-almoço, seria mais coerente.

      E agora, vou ganhar a vidinha – actividade na qual apenas sou prejudicado por aquilo que vou escrevendo em blogs.

    • Rocha diz:

      Uma coisa é certa, há asneiras que nos perseguem. E o respeito – absurdo e incompreensível – dos comunistas pelo Eanes, é um deles. O Eanes foi o maior assassino do prec, do mfa e de todo o projecto de revolução democrática e nacional. Sem um Eanes não haveria um Soares. Se o Soares é o pai destes cabrões do governo, o Eanes ainda é pior é o avô.

      Ele que escolheu o 25 de Novembro para celebrar a sua auto-reverência de aristocrata burguês, o Eanes merece ser insultado, mas falta-me a imaginação para o fazer (ele é mais baixo que os piores insultos que me ocorrem).

      Sim asneira com todas as letras, há coisas do passado que ainda não sofreram auto-crítica que baste.

  5. LM diz:

    Não é um acrónimo.

  6. Antónimo diz:

    Paulo Granjo tentar ser um novo Nando Moreira de Sá dando hype ao hype? Eu que não voto neles tenho ouvido e visto sempre o BE a ser o meio da esquerda, tentando pontes. Tentando trabalhar com gente, como o eurodeputado que depois de se ter mostrado incapaz de fazer pontes com o partido que o elegeu quer agora fazer pontes cusando o seu verdadeiro partido capaz de fazer pontes.

    Curisosamente ainda não vi, azar meu, nenhum jornalista perguntar ao Tó Zé Seguro o que pensa deste novo partido, só ao BE e PCP, e como se sabe é mesmo a esses dois partidos que se deve ir buscar votos se quisermos que a coisa viva. E quanto à Europa nada disse que o distinguisse sobremaneira do PS. Está tudo muito bem, a porra dos partidos é que divide a malta.

  7. João Vilela diz:

    Paulo Granjo, a diferença está em que a democracia avançada é uma etapa prévia ao socialismo, não é o próprio socialismo. Ah, e Marx não fala na mercantilização das pessoas, mas na da força de trabalho. O carácter de classe nunca deixaria de constar das suas análises, ao contrário do que acontece no LIVRE, por razões consabidas. Marx, apesar de um seu célebre gracejo, era marxista.

    • paulogranjo diz:

      Viva. A caminho de acabar este intervalo (que era só para afixar os comentários) e de voltar a ganhar a vidinha, uns breves comentários:

      A democracia avançada é concebida como uma etapa para o socialismo, tal como este é concebido como uma etapa para o comunismo. Mas programaticamente não há uma definição ou caracterização do socialismo, excepto na implícita aplicação da regra clássica de distribuição da riqueza, e do objectivo geral de acabar com a exploração do homem pelo homem (aliás, com alguma ambiguidade sobre se se aplica cabalmente ao socialismo ou apenas ao comunismo). Aplicando-se esse objectivo ao socialismo, isso não implica necessariamente a inexistência de sector privado; apenas quando este recorra a trabalho assalariado explorado. (Como tão pouco implica, en passant, a planificação centralizada ou a inexistência ou irrelevância do mercado, desde que os produtores envolvidos sejam os detentores dos seus próprios meios de produção) Mas, sobretudo, uma atitude jocosa para com uma frase que, no seu laconismo, poderia também referir-se à única especificação programática que o PCP apresenta de modelo societal para Portugal não deixa de ser uma situação irónica. Pelo menos, noutras bocas que não as de alguns dos nossos co-bloguistas.

      A mercantilização da força de trabalho inclui, na própria definição do valor desta última, a mercantilização das pessoas – não apenas dos trabalhadores, como dos seus filhos, enquanto futuros produtos. E é a definição do “valor da força de trabalho” que permite que a teoria do valor de Marx de diferencie qualitativamente das de Smith e ricardo, através da concepção da mais-valia e, consequentemente, da exploração. Essa mesma “mercantilização das pessoas” (dos produtores) que é intrínseca à construção da teoria do valor (e da exploração) é, por sus vez, a base explícita das teorizações acerca da alienação – que, sendo vista como resultando de condições materiais de vida e de posiçãos nas relações de produção que são partilhadas colectivamente, têm como espaço de vivência (diversificada) os indivíduos e as relações entre eles.

      A classe é concebida como podendo ser, comulativa e progressivamente, uma comunhão de condições de existência, com destaque para o que concerne a posição nas relações de produção (“em si”), uma consciência e vivência de uma identidade comum (“para si”) e a assunção colectiva de um papel de transformador da história e da sociedade (“em si e para si”). Mas é, pelo menos em Marx, uma abstracção e uma unidade analítica; nunca uma entidade (no sentido ontológico) com existência autónoma dos indivíduos que a compõem, das interacções mantidas entre eles e das interacções que mantêm com outros grupos. Mesmo quando diz que as classes, e a luta de classes, são o motor da história. A reificação da classe enquanto entidade com existência ontológica, não qual os indivíduos e relações internasse tornam irrelevantes (à imagem daquilo que a ideologia de direita faz com “os mercados”) não só é uma visão idealista e pouco dialética, como uma fonte de distorções analíticas – quer em trabalhos académicos sobre fenómenos políticos quer, o que é bem mais importante, na vida e na vivência política.

    • Argala diz:

      “a diferença está em que a democracia avançada é uma etapa prévia ao socialismo, não é o próprio socialismo.”

      Aahhh.. não tinha percebido: a diferença é que a economia mista de um se chama Bobby, e a economia mista do outro se chama Tareco. Está entendido.

    • joão viegas diz:

      A perspectiva de que a mercantilização da força de trabalho possa ser problematica por uma qualquer outra razão do que por tratar-se da força de trabalho de “pessoas” mergulha-me num oceano de perplexidade… O que é que o meu amigo quer dizer com isso ?

  8. xatoo diz:

    Meta objectivos da empreitada: Rui Tavares admitiu em tempo na sua coluna do “Publico” ter ascendência judaica, “o que lhe daria por si só o direito de reclamar a cidadania israelita” podendo mudar-se para ali de armas e bagagens (como fez o seu conterrâneo irlandês cuja pátria é o Sião Global). Não parecendo Tavares para aí virado, tem sempre de se subentender a criação de mais um partido que vai dividir a “Esquerda” como mais uma aposta da agenda oculta do Sionismo Global.
    A palavra “esquerda” vai entre-aspas porque, como é evidente, no actual panorama politico ocidental não existe espaço de representação para uma sociedade comunista – a burguesia transnacional transferiu esse espaço em outsourcing para a República Popular da China. Veremos o resultado…

  9. José Luís Moreira dos Santos diz:

    Um texto, qualquer que seja, sabe o autor deste post muito melhor que eu, é obra de alguém, se muito ou pouco convincente, adiante!, por isso, e desde há largos anos, sempre que leio seja o que for, tento descobrir quem está por trás desse texto. E ao estudar o caso exemplar de F.Pessoa, nunca me arrependerei de proceder assim, visto que me sinto cada vez mais satisfeito com o Pessoa que penso conhecer. Por isso, ouço os comentários de Sócrates de olhos fechados e concordo em larguíssima percentagem com aquilo que ouço. Depois, bem, depois abro os olhos e vejo quem fala. Com Rui Tavares, tantas semelhanças!

  10. anonimo diz:

    O único aspecto em que o novo partido pode fazer diferença face aos restantes que existem à esquerda do PS diz respeito ao ponto até onde vai (ou não) o seu pragmatismo para aceitar fazer coligações e participar (efectivamente) em governos (defendendo os seus princípios programáticos à medida do seu score eleitoral, mas aceitando cedências – através da abstenção, por exemplo). Se for mais um partido “puro” e “fiel” aos seus ideais, que não aceita qualquer compromisso para fazer uma coligação e considera que qualquer compromisso é uma “traição inaceitável” ao seu programa, então nada vem fazer de diferente, a não ser dividir ainda mais a esquerda.

  11. Argala diz:

    “Aplicando-se esse objectivo ao socialismo, isso não implica necessariamente a inexistência de sector privado; apenas quando este recorra a trabalho assalariado explorado.”

    Claro, mas “sector privado” é uma expressão que coloquialmente significa empresa que remunera capital privado com trabalho assalariado. É por isso que não dizemos que uma cooperativa de consumo é “sector privado”, mas cooperativo.

    “Como tão pouco implica, en passant, a planificação centralizada ou a inexistência ou irrelevância do mercado, desde que os produtores envolvidos sejam os detentores dos seus próprios meios de produção”

    Aqui discordamos. A centralização é a forma dos trabalhadores poderem ser detentores dos meios de produção.. com riscos, claro. Mas é a única forma.

    Cumprimentos

    • paulogranjo diz:

      Quanto ao primeiro reparo que faz, ele é errado factual e formalmente.
      Não estamos a falar em sentidos coloquiais, mas analíticos e com preocupação de rigor conceptual; assim sendo, há inúmeros exemplos de actividades individuais e familiares (nas áreas da agricultura, transformação em pequena ou média escala, e serviços) que, sendo privadas, não recorrem ao assalariamento e exploração.

      Quanto ao segundo, é errado factual e formalmente quando diz que é “a única forma” de os trabalhadores serem detentores dos meios de produção. Em actividades cooperativas e/ou auto-gestionárias também o são, tal como nos casos que referi no ponto anterior.
      Por seu lado, quando diz que a centralização (depreendo que com isso se refere à propriedade estatal e à planificação centralizada) corresponde, ou é uma forma, de os trabalhadores deterem os meios de produção, já não estamos no campo do certo ou do erredo factual, mas no campo da opinião e da polémica, aliás histórica dentro da esquerda que se considera revolucionária.

      • joão viegas diz:

        Discussão técnica, mas interessante e importante. No sentido de Argala, cabe lembrar que a constituição distingue entre sectores “publico”, “privado” e “cooperativo e social” (acho que ja houve também um sector “autogestionario” mas desapareceu com as revisões sucessivas).

        No entanto, como sublinha o Paulo Granjo, não existe, muito longe disso, equivalência entre “privado” e “com fins lucrativos”. As associações não têm fins lucrativos e muitas delas inserem-se no sector “privado”.

        “Privado”, no direito romano, era apenas o cidadão enquanto considerado como um simples particular, desprovido de força publica (a qual so podia ser acionada pelo magistrado ou com a participação deste ultimo).

        Boas

  12. Fernando Lacerda diz:

    Paulo Granjo, onde posso ler o seu fundamentado comentário à posição do Francisco Louçã que
    refere?

    • paulogranjo diz:

      Não é objecto deste post, até porque o tempo não estica e não atribuo assim tanta urgência à questão.
      Para além de que o meu breve comentário ao texto foi caridoso, e preferiria não tornar público tudo o que penso acerca desse escrito. Sobretudo porque não é a posição do autor acerca do assunto que me desagrada, mas a qualidade dos argumentos, aquilo que eles têm implícito e o grau de seriedade com que são usados e articulados retoricamente.

  13. xatoo diz:

    a acumulação de capital no actual estádio de desenvolvimento do capitalismo, não se faz através dos meios de Produção (cuja tecnologia os tornou excedentários) faz-se através dos meios de Consumo, razão pela qual não há crescimento, só uma caminhada descendente na “criação” de Valor negativo. O capitalismo está esgotado, mas não são as “cooperatvas” que irão salvar a humanidade, sem que exista previamente uma implosão (necessariamente violenta) das macro-estruturas. Nesse sentido, no inicio, o movimento “Occupy Wall Street” estava certo, mas a falta de um programa politico marxista levou à sua rápida cooptação e infiltração por toda a espécie de agentes ao serviço da classe dominante

  14. Vítor Dias diz:

    Para o caso de alguém ter ficado a pensar que no seu Programa o PCP dedica pouca atenção à sua proposta ou visão do socialismo para Portugal, aqui fica o que lá se diz:

    (…)«2. Para alcançar tais objectivos, o PCP aponta como características da sociedade socialista em Portugal:

    – no sistema político, o poder dos trabalhadores, a permanente fiscalização da actividade dos órgãos do Estado e o aprofundamento das formas de participação popular; a democratização de toda a vida nacional, a garantia do exercício das liberdades democráticas, incluindo a liberdade de imprensa e de formação de partidos políticos, a protecção na ordem jurídica dos direitos dos cidadãos, o respeito por opiniões, interesses sociais e aspirações diferenciadas e pelas crenças religiosas e a prática do culto, a realização de eleições com a observância estrita da legalidade pelos órgãos do poder, a intervenção e participação das massas trabalhadoras na direcção política e económica do País através dos órgãos de soberania, do poder local democrático e das organizações de classe, sindicais, populares, políticas e outras;

    – na organização económica, a propriedade social sobre os principais meios de produção, uma direcção planificada da economia combinada com a iniciativa e directa intervenção das unidades de produção e dos trabalhadores, a coexistência de formas de organização estatais, autogeridas, cooperativas, colectivas, familiares e individuais, com empresas privadas de diversa dimensão, a realização completa e definitiva da Reforma Agrária com inteiro respeito pela vontade dos trabalhadores e dos agricultores, a consideração do papel do mercado, o desenvolvimento harmonioso dos recursos e sectores da economia nacional e de todas as regiões, considerando o impacto ambiental dos planos de desenvolvimento, a dinâmica e eficácia da economia baseada nas melhores realizações do progresso cientifico-técnico;

    – no plano social, a libertação dos trabalhadores de todas as formas de opressão e exploração, o pleno emprego, a retribuição de cada um segundo o seu trabalho, o direito ao trabalho com relevo para a garantia do primeiro emprego aos jovens, a garantia dos estímulos materiais no desenvolvimento da produção, o respeito da propriedade individual resultante do trabalho próprio, a edificação de relações sociais baseadas no respeito pela dignidade e personalidade de cada cidadão, o desenvolvimento dos serviços sociais, a solução do problema da habitação, a generalização da prática desportiva e de uma saudável ocupação dos tempos livres, a defesa do meio ambiente, a erradicação dos grandes flagelos sociais como a fome, o analfabetismo, a miséria, a poluição, a droga, a prostituição, o tráfico de seres humanos, o alcoolismo e a criminalidade;

    – no plano cultural, a transformação da cultura em património, instrumento e actividade de todo o povo, o progresso da ciência e da técnica, a expansão da criação artística, o estímulo à criatividade, o pleno acesso ao ensino e um elevado nível de democracia cultural resultante da conjugação permanente da política das instituições do Estado socialista com a iniciativa, a participação e a actividade criadora individual e colectiva;

    – no plano ético, a formação da consciência social e individual em conformidade com os ideais da liberdade, dos deveres cívicos, do respeito pelo ser humano e pela natureza, da solidariedade, amizade e paz.

    • paulogranjo diz:

      Obrigado pelo esclarecimento, Vítor.
      E desde já um grande abraço.

      Ele tem ainda uma segunda utilidade, para a questão das acusações jocosas à frase do Rui Tavares sobre o que é para ele socialismo, pelo facto ser apontado como modelo económico de um socialisno para Portugal «a coexistência de formas de organização estatais, autogeridas, cooperativas, colectivas, familiares e individuais, com empresas privadas de diversa dimensão».
      Conhecia obviamente o texto, mas tinha ideia (errada, pelos vistos) de que a última parte correspondia apenas à Democracia Avançada.
      Fica, assim, claro que a visão programática do PCP é mais aberta e ampla do que o nível de discussão que estava a ser tido aqui.

    • Vítor Dias, acho muito oportuna a sua intervenção aqui a clarificar o programa do PCP. Porém, permita-me meter esta colherada: mais do que uma questão de programa, o que me parece que mantém a barreira à progressão do PCP não é o «anticomunismo» nem a incapacidade para penetrar nas classes médias, como diz o Nuno Ramos de Almeida no i – é a história. Isto é, a desconfiança de muita gente – e muita gente trabalhadora, proletária, se quiser, não de ‘classe média’ – de que o PCP, se chegasse ao poder reproduziria aquilo que já vimos na ex-URSS do tempo de Estaline ou Brejnev ou nas chamadas «democracias populares»: uma ditadura não da classe trabalhadora, mas sobre a classe trabalhadora e toda a sociedade exercida por uma casta de burocratas que, por não serem proprietários dos meios de produção, só têm como fonte e garante do seu poder e da manutenção dos seus privilégios um estrito controlo político sobre a sociedade. E por isso mesmo também, a extensão da política e do controlo político a todos os aspectos da vida das pessoas.
      Pode dizer-me que não e apontar-me as resoluções dos congressos do PCP. Mas em relação a esta questão (que eu acho que é muito real): o que é que o PCP já fez para contrariar esta ideia junto da opinião pública?

    • Argala diz:

      “o PCP aponta como características da sociedade socialista em Portugal:

      – na organização económica, a propriedade social sobre os principais meios de produção, uma direcção planificada da economia combinada com a iniciativa e directa intervenção das unidades de produção e dos trabalhadores, a coexistência de formas de organização estatais, autogeridas, cooperativas, colectivas, familiares e individuais, com empresas privadas de diversa dimensão (…)”

      QED e estamos conversados.

    • Nuno Cardoso da Silva diz:

      Um dos principais problemas do programa do PCP não é o que, mas o como…Até porque os camaradas são peritos em “doublespeak” e nem tudo o que dizem tem o sentido que o resto das pessoas lhe dá. Democracia, liberdade de imprensa, eleições, são termos que na boca dos comunistas podem querer dizer coisas muito diferentes daquelas que nós pensamos. Basta olhar para a União Soviética para perceber onde quero chegar.

    • Antónimo diz:

      Vítor Dias, Sorry lá, mas acho mais relevante e interessante quando pede que se responda às questões que deixa n’O Tempo das Cerejas sobre unidade à esquerda:

      http://otempodascerejas2.blogspot.pt/2013/11/unidade-de-esquerda-plataformas-minimas.html

  15. Don Luka diz:

    Qualquer organização, ou arremedo de organização, que decida formar-se num partido político, assina por baixo o anúncio da sua própria decadência. Não tarda estão a fazer bicos a uma qualquer cartilha, como todos os outros em todos os restantes partidos.

  16. JP diz:

    Paulo, eu acho que a afirmação de um partido faz-se mais nas posições que toma em relação a assuntos concretos do que em truísmos com que todos concordamos. É por isso que, tradicionalmente, desconfio de quem quer fazer uma “esquerda grande” ou “uma frente de esquerda” sem enunciar claramente qual a posição em relação a matérias concretas e essenciais.

    É por isso que continuo à espera que o LIVRE se defina em relação aos seguintes aspectos:
    1. Privatizações em curso;
    2. Aumento do salário mínimo;
    3. Aumentos da Função Pública e Pensões;
    4. Austeridade;
    5. Presença no Euro;
    6. Presença na Nato;
    7. Ingerência em países estrangeiros (p.e. Líbia e Síria);
    8. Orçamento de Estado 2014;
    9. Imposto sobre PPP’s;
    10. Orçamento Europeu;
    11. Regra de ouro na Constituição;
    12. Revisão Constitucional.

    É que, desconfio, a posição vai ser muito semelhante à do PS. E, por isso, por muitas voltas que se dê à forma, o conteúdo continua a ser uma desgraça.
    Ponham lá as pessoas que quiserem. Muito bem falantes e muito “cool”. Se as políticas forem as do PS (com um bocadinho mais de chá), ficamos conversados sobre “alternativas à esquerda”.

    Cumps
    JP

    • paulogranjo diz:

      Eu também estou curioso, pois embora a área política que esse futuro partido se atribui não corresponda à minha (e embora as tomadas de posição à partida não garantam se o seu papel vai ser positivo ou negativo para a construção de uma alternativa de esquerda), é bom sabermos aquilo a que eles vêm, no que diz respeito às questões que mais interessem a cada um de nós.

      Como 3 dos seus mais visíveis promotores subscreveram e continuam a participar no Congresso Democrático das Alternativas, suponho que as respostas às questões 1 a 4, 8, 9 e 11 virão a ser no essencial coincidentes com as aí tomadas – com a expectável diferença de que, nesse forum, se tomam as posições consensuais entre participantes muito diferentes, pelo que eles deverão ter mais coisas a acrescentar enquanto partido.

      Quanto às outras questões, olhe… esperemos, para ver o que é que os homens dizem.

  17. Está a passar no canal Arte uma série dinamarquesa interessante chamada Borgen, que relata a vida de uma mulher na política. Depois de ter sido primeiro-ministra de um governo de coligação, a protagonista irá formar o seu próprio partido. Um partido-charneira, situado no centro do espectro político, preparado para fazer alianças tanto à esquerda como à direita. Inicialmente enche-se de gente que traz na bagagem as causas mais díspares, a sede central do partido parece um circo de causas, umas fracturantes outras nem por isso. Apesar do seu carácter camaleónico, chega uma altura em que Birgitte tem de mandar o circo abaixo e reunir oum núcleo durao para clarificar um programa político. Veio isto à cabeça a propósito do nóvel partido do Rui Tavares…

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