Os ecologistas, com boas intenções, são a «carne para canhão» da privatização da propriedade pública Entrevista com António César Dias

Entrada: César Dias, ex-funcionário do Ministério da Agricultura, deu uma entrevista à Revista Rubra onde defende a caça como direito à luta pela propriedade pública e fala duma relação dos citadinos com o campo que destrói o modo de vida dos camponeses. Diz que os parques naturais não podem ser taxados e que o Alentejo está hoje todo vedado com arame farpado. Pergunta se querem um polícia atrás de cada ciclista que sobe a montanha, de cada pescador, de cada pastor…

Numa altura em que há uma pressão social em defesa dos direitos dos animais, com ampla repercussão na comunicação social, você é um defensor da caça.

Claro. A caça é uma aquisição revolucionária dos camponeses. É uma vitória contra a aristocracia, contra a apropriação dos animais selvagens pela aristocracia, feita numa altura de disputa pela comida. Mesmo que hoje não tenha esse significado de alimentar populações, embora ele seja de novo importante com a crise, a caça é um direito importante no mundo rural, porque é uma pressão para não haver barreiras no mundo rural, não só para os camponeses mas todos os que habitam no mundo rural; através da caça vivem um espaço sem limites, sem barreiras, não sujeito ao limite da propriedade agrícola. É questionada por citadinos ou pessoas que não vivem no mundo rural, só têm o campo como uma casa para 2ª habitação por exemplo. O problema não está na caça mas na repartição dos espaços que é feito por certas formas de caçar, nomeadamente as organização de caça privadas.

O que é isso, a caça privada?

A caça foi livre em tempos que já lá vão. Depois da revolução francesa a caça passou a ser livre, não era propriedade de ninguém. Isto sobretudo nos países que tiveram revoluções francesas, ou seja, revoluções burguesas mais tardias em que a participação popular e camponesa foi importante. Na Inglaterra ou na Europa Oriental a caça era privada e assim se manteve e o povo não tinha direito a caçar. Salazar criou as coutadas, zonas de caça privada, no Alentejo, zona de grandes latifúndios. Porém era uma lei que impedia que as coutadas representassem mais de 50% do concelho e era obrigatório no meio das coutadas haver corredores livres. Deixava-se algo para «os pobrezinhos». Quando chegou o 25 de Abril o povo invadiu as coutadas. E é verdade que nos anos a seguir houve formas de caça descontroladas que levaram as espécies à exaustão.

E agora?

Bom, as leis mudaram, não sei precisar datas nem detalhes. A pouco e pouco foram-se criando as zonas de caça turísticas, que é um regresso às coutadas mas agora sem limites e sem corredores obrigatórios, podem estar umas em cima das outras. Basicamente as populações do Alentejo, por exemplo, estão vedadas, andem por onde andarem em poucos metros dão com um arame farpado. Nem um piquenique à beira da estrada se pode fazer, está tudo vedado com arame farpado.

No norte, onde há mais pequena propriedade, criaram-se as zonas de caça associativas e municipais. As municipais, públicas, ficaram com os restos, más zonas para caçar. As melhores são as turísticas, dos grandes latifundiários (lebre, caça grossa). Os latifundiários criaram zonas de caça turísticas que teoricamente quem lá vai paga e pode caçar mas no fundo só lá caçam eles, muitos dessas zonas de caça são aliás propriedade de bancos. Muitos destes latifúndios, se ligares para lá, vão-te dizer «que não se pode caçar, está cheio» – mas é mentira, é que aquilo passou a ser lazer só para os ricos. O mesmo fizeram na minha opinião com os turismos rurais, foram buscar dinheiro dos fundos europeus para recuperar os montes; ligas para lá e o turismo rural «está sempre cheio». Recuperaram foi as próprias casas, as suas propriedades. Depois quem controla o quê? Era suposto nessa zonas de caça haver repovoamento de espécies. E há?

Fala-se que querem acabar com a caça porque é uma das formas do controle de armas, que passam a estar só no Estado…

Exactamente, há 600 mil armas legais na mão do povo. A caça retira o monopólio da violência ao Estado. Foi aliás devido também à guerra colonial que o número de caçadores cresceu. Havia 400 mil. Agora há cento e tal mil e só 70.000 tiraram a licença que se paga, é de facto um imposto. Agora os mais pobres não têm dinheiro para a licença – muitos deles aliás operários nas zonas do Norte e Centro, onde a caça é um complemento de vida mas também de convívio social. Criaram leis feudais, tudo contra os pobres. Se eu atropelo uma lebre em vez de a comer tenho que a ir entregar à GNR. Para quê? Quem a vai comer? Se não entregar apreendem-me o carro (a arma). Começaram por obrigar a colocar chips nos cães perigosos e agora obrigaram todos os caçadores, ora cada um tem 10, isso fica caríssimo, e passa a ser um negócio e mais uma forma de controle sobre os caçadores. São leis que destroem o convívio e cercam os camponeses, os seus meios de subsistência. Cercam-nos com leis e vedações.

A caça passa a ser um privilégio…

E os latifúndios servem para isso. Antes também se levava o Américo Tomás, o mais ridículo dos presidentes do Estado Novo, a dar uns tiros. Hoje o povo, por exemplo, de Mora ou Avis, está metido dentro de redes e vedações, tudo leis em nome da defesa do controle da caça. Os ecologistas têm sido a carne para canhão deste processo, sem o saberem, cheios de boas intenções, vão privatizando o espaço e colocando as pessoas em gaiolas, em nome do respeito pelos animais.

Mas tantos dizem que não devíamos comer animais?

Comemos o quê? Erva? As ervas não são seres vivos? Quando morrermos também nos comem! Há uma relação entre espécie e inter-espécies. Claro que tem que haver alguma ética, mas a ética devia começar por não ter animais presos em apartamentos e gaiolas. É preciso limites claros de bom senso, um touro bravio nunca vai ser uma vaca; não se vai tirar um caniche a uma velhota, claro, mas não se pode ter um cão a uivar para os vizinhos; tenho dois netos não os posso levar a jogar à bola em qualquer jardim, repito, em qualquer jardim, que é só merda de cão. Então é isso o direito dos animais? O que é um aviário? Um horror para os animais mas ainda pior para nós que só comemos hormonas. Como é que isso se resolve? Pondo fim à grande propriedade e equilibrando a relação do homem com a natureza, a relação da cidade com o campo, deixando de fazer leis que expulsam as pessoas das aldeias para as cidades, fazendo das aldeias sítios interessantes com cultura como no País Basco ou em França, em vez de locais abandonados onde ninguém quer viver, manter formas de agricultura colectivas ou familiares.

Temos que ter leis que protegem os homens, o homem não pode determinar-se pelas outras espécies, senão acaba submetido por estas. Tem que haver ética e sobretudo educação – em primeiro lugar proteger o homem, em segundo educá-lo para haver alguma ética na relação com as outras espécies.

Há leis que dificultam o acesso a outros bens públicos?

Sim, por exemplo, na apanha de cogumelos, lenha, bagas. Na Suécia é proibido vedar propriedades – só se pode vedar um limite à volta das casas e as bagas são propriedade colectiva, pública. Cá, as leis são dúbias, tão dúbias que acabam por proibir apanha livre de cogumelos. Há zonas vedadas, com letreiros: «Proibido apanhar espargos, cogumelos e frutos silvestres». O que é isto?

Outro dos temas polémicos é o pagamento de uma taxa nos Parques Naturais.

Em lado nenhum da Europa se vê isso. Protege-se a natureza acabando com o homem? Ou, pior, restringido o acesso à natureza a um punhado de homens, os que pagam? Acabam com todos os espaços livres que não são taxados pelo Estado, sempre em nome de boas intenções. Mas boas intenções para fins ilegítimos tornam as intenções más. Tem que se perceber que nas decisões não chega agir bem. É preciso perguntar em nome de quem, numa sociedade desigual, se está a agir? A favor de quem? Começou com as praias de nudismo. Para quê? Aceito que haja praias para nudistas onde eu, que não sou nudista, também posso ir; mas praias só de nudistas é uma forma de privatizar espaços públicos. Taxar parques naturais, proibir como fizeram na Costa Alentejana, no Parque do Sudoeste a apanha de marisco por turistas (representa 1% da apanha total) é de facto estar a apoiar os arrastões e grandes armadores. E os ecologistas apoiam, em nome da defesa os peixes. Ora essa boa intenção acaba a defender os arrastões. Os parques naturais, ainda bem que existem; devem ser para as pessoas passearam, pescarem, andarem a pé, divertirem-se. Os parques naturais não são museus, são zonas onde vivem e devem viver pessoas, e em toda a Europa vivem sem conflitos, em harmonia, tirando da natureza mas sabendo que há limites.

Só conheço em toda a Europa uma situação de conflito, nos Pirenéus. Estava em perigo de extinção do urso e trouxeram uma espécie de urso da Eslovénia que é mais agressivo. As populações não o querem lá porque é perigoso para elas e para o gado. Aí, há um movimento organizado que não quer que o urso seja uma ameaça porque querem uma montanha humanizada, com pastores, casas e onde as pessoas possam passear, subir a montanha, fazer turismo rural, pastorear.

Em toda a relação com a natureza o pior que pode haver é esta euforia citadina de tipos que não sabem nada. Libertaram aves de rapina no Alentejo que comem as galinhas. O que querem? Que os camponeses os recebam de braços abertos?

Os ecologistas, na sua maioria – há excepções, como em tudo, há ecologistas radicais que questionam a grande propriedade, os grandes armadores, o controle genético das sementes –, mas a maioria tem sido a carne para o canhão da presença constante do Estado. Querem um polícia fardado atrás de cada ciclista que sobe a montanha, de cada pescador que vai para a praia, de cada pastor…

Entrevista publicada na Revista Rubra nº 16, revista crítica da economia política, feita pelo colectivo Revista Rubra. Publicação trimestral.

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9 respostas a Os ecologistas, com boas intenções, são a «carne para canhão» da privatização da propriedade pública Entrevista com António César Dias

  1. JgMenos diz:

    Alguns acertos e os habituais excessos: os ‘pobres’ dos caçadores; cada um tem 10 cães!

  2. S. diz:

    Alguém que responde com comer ervas se não pudermos comer carne, não pode ser levada a sério. Não me interessa que seja tão de esquerda quanto eu. É esta mentalidade que continua a explorar os animais. Apesar de não ser nem vegan nem vegetariano, todos os estudos sérios, feito por Univesidades e Institutos credíveis mostram que a quantidade de produtos animais que ingerimos por dia é o suficiente para uma semana, se tivermos uma alimentação inteligente. Tirando o ferro e a B12 (mesmo ferro pode ser obtido mas ingerindo grandes quantidades de cereais) todos os outros alimentos fornecem os nutrientes necessários. Resumindo, não é preciso sermos todos vegetarianios, basta todos comermos menos produtos animais e assim desincentivar a exploração intensiva.

    • Paula diz:

      Concordo, consigo. Mas parece que esta entrevista está a fazer sucesso numa esquerda, no mínimo, pouco informada, para não dizer pior…

  3. LM R diz:

    “Só conheço em toda a Europa uma situação de conflito”???
    Até por cá as há.

  4. André Carapinha diz:

    Excelente entrevista!

  5. m. diz:

    Parabéns pela entrevista.

    Na entrevista: «Os latifundiários criaram zonas de caça turísticas que teoricamente quem lá vai paga e pode caçar mas no fundo só lá caçam eles, muitas dessas zonas de caça são aliás propriedade de bancos.»

    Pois então já sei onde «penhorar» a propriedade privada dos accionistas dos bancos quando estes tiverem de ser novamente recapitalizados por instruções do BdP – já não deve faltar muito.

    Enquanto accionista e avalista da República Portuguesa do «funding» dos bancos, tenho o direito «privatizar a favor do Estado e do contribuinte» o património mobiliário e imobiliário da banca. É assim ou não é?

  6. Rivera diz:

    A caça uma conquista dos camponeses? Esta alminha vive no tempo dos Robins dos Bosques? A caça não representa uma forma sustentável, nem economicamente nem ecologicamente, de produção de alimentos. É um convívio que demasiadas vezes resulta num perigo ambiental e em acidentes entre seres humanos. Necessário é controlar mais ainda é as actuais zonas de caça, quer associativas, municipais, quer privadas, até à sua gradual extinção porque o espectáculo da morte não pode ser diversão organizada e se a caça não funciona como fonte de alimentação (como a pesca ainda é) economicamente produtiva, acabe-se (faça-se as contas aos custos em equipamento, combustíveis, balas que custa um coelho ou uma perdiz, em relação a uma fonte de proteínas animais tradicional). Idiotas uteis não são os ecologistas (que realmente conhecem o meio ambiente) são esta espécie de parvos que gostam de provocar e que se neste caso é um ex.funcionário do Ministério da Agricultura assim já dá para perceber em parte porque é que a nossa agricultura anda nas ruas da amargura.

  7. Rodrigo Xavier diz:

    Conclusões da opinão sobre direitos dos animais deste senhor que me fazem rir às gargalhadas:
    – Todos os seres vivos sofrem.
    – Matar um animal para comer é o mesmo que um animal que está morto ser comido por minhocas ou necrófagos.
    – Haver escravos é mau, mas em vez de acabar com isso devia-se começar por retirá-los dos sítios onde eles estão presos, tipo gaiolas. Deviam haver mais escravos à solta, portanto.

    A ética começa e acaba no sítio que permita a este senhor fazer o que já fazia antes de pensar em ética. Uma anedota.

    • Paula diz:

      Ainda não percebi se a projeção dada a esta entrevista se deve ao reconhecimento genuíno do seu valor ou se é puro sarcasmo.

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