E agora podemos voltar a falar de coisas sérias? Do euro, por exemplo

Eu, ignorante, me confesso. Há poucos dias atrás desconhecia tudo acerca do senhor da foto que se segue.

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Chama-se Robert Mundell. Já ouviram falar? Parece que foi um dos contemplados com esse falso Prémio Nobel – que usurpou o nome do dito – da Economia, e é, seguramente, um dos papas das teorias de desregulação total dos mercados e um dos proponentes de um “laissez faire” para o grande capital que tem a sua contrapartida no ataque à protecção dos direitos laborais. Em suma, uma das fontes inspiradoras de tudo aquilo que designamos sob o nome (às vezes demasiado vago) de neoliberalismo. Conheci esta personagem através do interessante blogue “Der Terrorist”

Ora, uma das notoriedades de Mundell resulta de ser ele a principal fonte inspiradora da moeda única na Europa. E um dos seus argumentos a favor do que veio a ser baptizado com o nome de “euro” é o de que a perda de soberania dos Estados sobre a emissão de moeda, entregando-a a um banco central “independente”, lhes retiraria qualquer controlo relativo às suas políticas monetárias, as quais passariam a ser realizadas de forma “saudavelmente” anti-democrática. A única maneira de os países que perderam esse instrumento de soberania manterem as suas economias competitivas seria, pois, mediante a eliminação de regras ou de entraves ao funcionamento dos mercados, nomeadamente financeiros, acompanhada pela razia mais radical sobre a legislação de protecção do trabalho e do emprego, com a facilitação dos despedimentos, a diminuição dos salários dos trabalhadores, a destruição tendencial dos serviços públicos gratuitos e da segurança social, e pela supressão da maior parte das leis de protecção ambiental. Ou seja: o pacote completo que estamos a ver aplicado ao Sul da Europa por governos que só descansarão no dia em que este continente se tiver transformado numa versão pequena da América do Norte. O euro, para Mundell, seria o meio fundamental para operar esta imensa subversão da democracia social, a qual, por sua vez, requer a demolição da democracia política: não é por acaso que o banco JP Morgan – um dos principais operadores da mega-crise financeira que abriu caminho a este plano – está já a pugnar pela instauração de regimes autoritários no Sul da Europa. Eles sabem que o austeritarismo não é compatível com a democracia, mesmo na versão débil que conhecemos.

Por tudo isto, quando discutimos o futuro da moeda única ou a permanência de Portugal na zona euro, temos de estar conscientes que é esta a génese e que é esta a natureza profunda de semelhante instrumento monetário. O euro tem a anti-democracia inscrita no seu código genético. E a esquerda precisa de pensar esta questão em todas as suas implicações que, antes de serem financeiras e económicas, são políticas.

Eu sei que existe todo um interessante debate à esquerda, realizado em espaços como o “Vias de Facto” ou o “Passa Palavra”, que apontam para a possibilidade de democratizar a zona euro, o que passaria pelo pleno estabelecimento de um federalismo de raiz eventualmente libertária, o qual assentaria num orçamento comum a todos os países, pressupondo uma distribuição democrática transnacional dos recursos, o controlo democrático dos mecanismos financeiros a uma escala igualmente transnacional, etc., etc. O contrário disto, sustentam os defensores desta perspectiva, é o ensimesmamento nacional que, pugnando pela saída unilateral do euro, não conseguirá retirar cada um dos países que a assumam do poço austeritário, abrindo antes o caminho aos populismos de natureza fascista ou fascizante que jazem dentro das soluções nacionalistas à espera da primeira oportunidade. (Note-se que não incluo aqui o argumento dos que sustentam ter a saída do euro uma implicação catastrófica sobre os rendimentos disponíveis dos trabalhadores e, portanto, um mergulho, a curto prazo, numa situação de miséria generalizada).

Que tenho a dizer sobre isto? Em primeiro lugar, que admito a pertinência de quase todas as premissas desta argumentação, embora me pareça por vezes exagerada a agitação do espantalho fascista. É evidente que o combate contra uma estratégia das oligarquias político-financeiras que se desenrola numa escala inter- e transnacional tem de se situar, também ela, nessa mesma escala. E também concordo que as esquerdas deviam estar a trabalhar, há muito tempo, na construção de alianças igualmente transnacionais (coisa que nem sequer começaram). Mas, por outro lado, este argumento eleva de tal maneira a fasquia da exigência colocada à luta política que acaba, facilmente, por degenerar numa confissão de impotência. Se tudo o que podemos fazer de politicamente eficaz exige a escala transnacional, se a focalização do combate no espaço nacional é, à partida, perverso, então pouco nos resta de acção efectiva, pois estamos condicionados por variáveis que escapam exponencialmente ao nosso controlo, visto excederem a escala, muito mais modesta, em que nos encontramos.

Não tenho uma posição fechada sobre a questão da saída ou da permanência de Portugal na zona euro. Há bons argumentos nos dois lados do debate. Tenho, contudo, sérias dúvidas de que possamos esperar por uma mirífica unidade dos trabalhadores (e dos desempregados e dos pensionistas) à escala da Europa – ou da União Europeia –, capaz de introduzir democracia num modelo que foi concebido originariamente para se blindar contra toda a intervenção democrática. Algo terá de ser feito também, e talvez sobretudo, ao nível mais modesto onde nos situamos. Isso pode passar, de facto, pelo abandono do euro – sabendo nós as repercussões negativas que isso poderá ter em muitos dos arranjos internacionais do grande capital.

Esta discussão fica suspensa até melhores dias – ou melhores ideias.

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34 respostas a E agora podemos voltar a falar de coisas sérias? Do euro, por exemplo

  1. Gambino diz:

    A síntese feita pelo World Socialist Website do documento é bastante boa.
    Como o documento original tem cerca de 16 páginas e é em economês, era previsível que a imprensa portuguesa nem sequer pegasse no tema. A ilusão está em vender uma ideologia liberal extremista como uma inevitabilidade técnica, determinando e condicionando a própria discussão. Basta ver como a discussão em torno do Euro raramente evidencia o carácter não democrático e altamente submisso ao poder financeiro da quase totalidade das instituições europeias. Em vez disso, esta discussão assenta em complexas matérias económicas e financeiras, como se o Euro fosse mais do que uma ferramenta política da guilda capitalista a que chamamos União Europeia.

    Aqui fica o link para o documento da J.P. Morgan:

    Click to access jpm-the-euro-area-adjustment-about-halfway-there.pdf

  2. João. diz:

    “É evidente que o combate contra uma estratégia das oligarquias político-financeiras que se desenrola numa escala inter- e transnacional tem de se situar, também ela, nessa mesma escala.”

    É evidente porquê? Por mim aquele que numa luta de oposição toma a lógica do oposto como a sua já perdeu a luta e nem sequer o sabe. Quando o trabalho tomar a lógica do capital transnacional como a sua, já perdeu a luta, porque o capital transnacional é uma minoria, serão os tais 1% do mundo, ou acredito, menos ainda que isso. Esses 1% são fortes no seu terreno,deslocar para lá a luta é dar-lhes força. Dizer que a defesa de maior autonomia nacional vai dar em fascismo é não ter confiança nas massas, é julgar que os trabalhadores preferem lutar entre si, a cooperar e negociar.

    Quanto mais o grande capital avançar mais vai parecer que as estruturas mediante as quais se reproduz são naturais, do que decorre que qualquer mudança de fundo nessas estruturas pareça como uma catástrofe natural, um cataclismo – como se diz hoje da perspectiva de saída do euro.

    • Mário Machaqueiro diz:

      João,
      Até os clássicos velhinhos do marxismo perceberam que não se combate a “lógica do capital transnacional” senão com uma estratégia igualmente global e transnacional. Em tempos, chamou-se a isso “internacionalismo proletário”. Será preciso recordar que a primeira grande derrota do movimento operário e socialista começou quando, na véspera da 1.ª Guerra Mundial, as lógicas nacionais (e nacionalistas) se sobrepuseram ao desígnio internacionalista? Será preciso lembrar que a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia foi feita precisamente em nome de uma revolução socialista mundial que, no quadro analítico da época, significava sobretudo uma revolução nos países europeus de capitalismo avançado, a começar pela Alemanha? Será preciso recordar, uma vez mais, que quando os bolcheviques constataram que ninguém na Europa os iria seguir ficaram a braços com um enormíssimo problema (construir o socialismo num só país, ainda por cima com um enorme atraso económico)? E será preciso lembrar que, mesmo assim, nunca desistiram de procurar uma solução que teria de exceder largamente o quadro da Rússia ou da URSS?
      Estou a dar estes exemplos, não porque me pareçam referências incontornáveis mas porque, a julgar pela linguagem que o João utiliza, eles são imediatamente compreensíveis para si.
      Meu caro, já reparou que os tais 1% de que fala estão a ganhar, há muito tempo, a luta de que fala? E a ganhar de forma esmagadora. E já reparou também que grande parte desse triunfo resulta de as esquerdas mostrarem-se sistematicamente incapazes de perceberem a lógica e os objectivos que animam esses 1% e, portanto, de não conseguirem gizar, com um mínimo de eficácia, estratégias à altura dessa lógica e desses objectivos? Poderá o João consolar-se com a retórica vazia da “confiança nas massas” e a pensar com a cabeça situada no séc. XIX em vez de tentar sintonizá-la com o séc. XXI. Garanto-lhe que não vai longe.

      • João. diz:

        “Garanto-lhe que não vai longe.”

        – Essa sua lógica é que está a ir longe como o caraças. O capital já treme de medo tal é a força da lógica transnacional do proletariado. A sua lógica implica que nunca se decida nada e é por isso que a esquerda está em decadência, está cheia de líricos, de parladores da luta global que, portanto, não faz nada de concreto pelas lutas locais – enfim, faz, diz que são caminho para o fascismo como fazem no passa palavra.
        Nunca houve uma receita geral para a luta comunista – até Stalin sabia disso e por isso nunca recomendou aos comunistas ocidentais que seguissem a via bolshevique, enfim, sempre houve a noção de ligar esse internacionalismo de que fala às condições locais que por sua vez variam muito.

        Este novo esquerdismo tipo Passa Palavra, de que você parece um adepto, é apenas mais uma versão do liberalismo, por isso se sente tão à vontade com a lógica do capital transnacional. Veja que não há acções concretas, medidas concretas, localizadas, é tudo geral e global, ou seja, inefectivo.

        Você é que ainda espera que o capitalismo caia por si mesmo, por suas próprias contradições. Não. O capitalismo alimenta-se de suas próprias contradições, expande-se através delas, expande-se devorando as suas próprias formas através de novas formas.
        A luta de esquerda passa por se criarem espaços comuns, colectivos, localizados, concretos e de baixo para cima (freguesia, concelho, cidade, região, país – fazer pelas localidades o que as comunidades podem fazer sem ficar à espera que se faça no mundo inteiro). A luta contra o capitalismo como um todo é um erro, é preciso concretizar, é preciso até preservar o que o capitalismo realizou de útil para as comunidades.
        Ser anti-capitalista, como se denomina o pessoal do Passa Palavra é querer lutar contra o mundo, é uma postura adolescente. Serve para exibições na blogosfera, em conferências, manifs e rodas de ganzas, não serve para construir alguma coisa de valor colectivo no terreno, no real. Você vivem no imaginário e portanto estranham partidos que se ligam ainda ao real, a trabalhadores no terreno, à necessidade de disciplina colectiva para a acção política. Você pertence à esquerda abstracta, à esquerda do debate infinito.

        • Mário Machaqueiro diz:

          Passo por cima da referência a Staline para que a conversa não fique já inquinada. É claro que eu poderia responder-lhe à letra e dizer-lhe que você pertence à esquerda que não pensa, que foge do debate de ideias como o diabo da cruz por não ter, de facto, ideia nenhuma do que se está a passar e do que fazer. Daí você só ter blá-blá serôdio para apresentar, extraído de manuais requentados, do género “o capitalismo alimenta-se de suas próprias contradições, expande-se através delas, expande-se devorando as suas próprias formas através de novas formas”. Dá-me licença que boceje?
          Depois diz: “A luta de esquerda passa por se criarem espaços comuns, colectivos, localizados, concretos e de baixo para cima (freguesia, concelho, cidade, região, país – fazer pelas localidades o que as comunidades podem fazer sem ficar à espera que se faça no mundo inteiro)”. E isto quer dizer o quê? Pura vacuidade, que não tem tradução concreta (como você gosta de dizer) de espécie alguma. Por fim, a boca proverbial: “Você vivem no imaginário e portanto estranham partidos que se ligam ainda ao real, a trabalhadores no terreno, à necessidade de disciplina colectiva para a acção política”. Tudo isto cheira a conversa de PCP, supondo que esse seja, para si, o exemplo de um partido “ligado ao real”. Que o PCP arraste uma oposição anémica e totalmente ineficaz, feita disso mesmo que você acusa – conferências, manifs e não sei se rodas de ganzas (na Festa do Avante, certamente que sim) – é algo que obviamente não lhe passa pela cabeça.
          Mas não deixa de ser cómico que você me faça acusações de esquerdismo adolescente, quando todo o meu texto é pensado justamente para levantar dúvidas aos argumentos dos que pensam que tudo tem de passar apenas pela intervenção na escala internacional ou transnacional. Afinal, eu até defendo a necessidade de intervenções bem mais localizadas, desde que feitas com inteligência estratégica – que passa por conhecer bem os objectivos (concretos) do inimigo e ter um programa claro, exequível e mobilizador. Tudo o que as esquerdas, a meu ver, ainda não têm e que a conversa vaga sobre revolução não consegue substituir. Pelo que, feitas as contas, uma dúvida me assalta: será que você leu, de facto, o que eu escrevi?

          • João. diz:

            “Dá-me licença que boceje?”

            Boceje à vontade e o que bem quiser. Até na crítica você imita a direita. Como sabe é um velho tema da direita dizer que os comunistas não pensam, que só seguem o manual. Não me surpreende nada que você se sirva dos mesmos recursos. Enfim, mais um indignadinho, um pedinte de batatinhas ao Barroso na UE, à espera que o pessoal lá na europa resolva os problemas dos portugueses. Felizmente para você que existe o PS.

          • Mário Machaqueiro diz:

            Engana-se, meu caro. Eu não disse que os comunistas não sabem pensar. Eu estava só a referir-me a si. Esta sua resposta confirma-o. Na falta de argumentos, recorre-se ao expediente “ad hominem”.

          • miguel serras pereira diz:

            Mário, só uma precisão: eu não penso que “tudo tem de passar apenas pela intervenção na escala internacional ou transnacional”, e também “defendo a necessidade de intervenções bem mais localizadas”. O problema é orientação e objectivos: lutarmos localmente não significa abdicarmos de tentar generalizar e exportar as lutas e as paradas em jogo, de interpelar os interesses que temos em comum com aqueles cuja solidariedade garantirá os nossos interesses e objectivos, e vice-versa. A dominação oligárquica que sofremos localmente tem as suas raízes e praças-fortes mais profundas num terreno mais vasto, e não devemos perdê-lo de vista no lugar em que agimos. De acordo?

          • Mário Machaqueiro diz:

            Inteiramente de acordo. O problema é passarmos tudo isso à acção concreta, sem incorrermos, claro está, no activismo politicamente iletrado que campeia por aí, nem nos ficarmos pelo seu oposto: o activismo de sofá, inteligente e lúcido mas pouco produtivo. Por agora, vejo muita gente a pensar coisas pertinentes sem que isso, contudo, se traduza na emergência de um (ou mais) movimento(s) com vontade e capacidade para alterar as regras do jogo. Também é um facto que não nos podemos substituir a “vontades colectivas” (esta expressão é suspeita e por isso coloco-a entre aspas) que não existem.

          • João. diz:

            Dizer que alguém não pensa é fácil. É só dizê-lo. Neste caso, qualquer um que saiba ler e escrever o pode fazer aqui. Aliás a sua resposta ao meu primeiro comentário já termina com uma sugestão desse género, ao fim ao cabo é você que parece mais dependente em acusar os outros de não pensarem. Embora isto não seja importante.

            O que importa é que sem conquistas locais não há conquistas globais. Qualquer um com o mínimo de formação dialéctica sabe que a ideia geral é o momento abstracto que tem depois de passar pela negatividade, no caso, para o geral e global, passar pelo concreto e local para que emerja o individual, o universal concreto, podemos dizer: o exemplo.

            Exemplo que depois inspira novas ideias gerais que deverão passar pelo crivo do concreto e do local para se constituirem em outros exemplos de modo que, a meu ver, é disto que se faz o internacionalismo concreto, os trabalhadores em suas lutas locais trocam exemplos, experiências entre si, mas cada colectivo, cada local, tem as suas condições próprias embora é claro as metas sejam globais. A partilha de experiências e exemplos já é de si um forum de globalização até porque não se partilham experiências sem um pano-de-fundo que dê um horizonte comum às lutas locais.

            Você é mais um anti-PCP. Tem muito s a quem se juntar.

          • Mário Machaqueiro diz:

            Pensar é desenvolver argumentos sem ataques “ad hominem” e processos de intenção. Se tivesse entrado aqui com essa atitude, eu não lhe teria respondido como respondi. Já percebi que, para si, a mais pequena crítica que se faça ao sacrossanto partido é imediatamente interpretada como anti-PCP. Conheço demasiado bem esse sectarismo estéril – que não é, aliás, exclusivo de militantes e apoiantes do PCP. Quando vos aparece pela frente alguém que tenta pensar fora da caixinha, vão logo a correr à procura da rotulagem habitual. É uma tristeza, até porque essa postura entrincheirada não serve a ninguém que queira ver a esquerda com influência política efectiva neste país. Parece que isso não é prioridade para vocês, preferindo entreterem-se em guerrilhas com pessoas que até podiam ser vossos aliados.
            Enfim, não acreditando que esta desconversa leve a algum lado, fico-me por aqui.

          • João. diz:

            “A dominação oligárquica que sofremos localmente tem as suas raízes e praças-fortes mais profundas num terreno mais vasto, e não devemos perdê-lo de vista no lugar em que agimos.”

            Depende. Há os que têm raizes mais vastas e há os que não as têm. O que você em Portugal pode fazer com um banco português não o faz com um banco estrangeiro – é por isso que é mais um erro de palmatória equiparar o capitalista nacional ao capitalista estrangeiro. Não é de todo a mesma coisa, principamente para nós.

            Veja o caso da EDP.

            Agora qualquer medida que faça colidir o interesse público com o interesse privado passa por colidir com a China, ou seja, a mesma acção tem um valor diferente caso a empresa seja controlada por portugueses ou seja controlada pelo Estado chinês. Um dos motivos da insistência na dimensão nacional por parte do PCP é porque ele sabe muito bem que quanto mais internacional for o capital menos poder o interesse público português terá. Quem não for um lírico sabe que é menos problemático afrontar o capital nacional, mesmo o de maior dimensão, do que o capital alemão ou americano só para dar dois exemplos claros. Quem sugere, portanto, que capital nacional ou estrangeiro é a mesma coisa está enganado. É preferível desenvolver e modernizar o capital nacional a substituí-lo por capital internacional – isto do ponto de vista da esquerda. Do ponto de vista da direita é indiferente ou talvez até prefiram mais capital internacional para, precisamente, diminuir a capacidade de resistência e de luta dos trabalhadores.

          • João. diz:

            Informo que não sou militante do PCP. Já nem moro em Portugal há uns bons 10 anos, portanto o que eu defendo vincula-me só a mim. Agora, o que é verdade é que eu decidi aderir subjectivamente ao PCP precisamente porque julgo que a esquerda decadente é aquela do tipo em que se move o pessoal do Passa Palavra, ou seja, a que apenas designa para si objectivos globais como se procurasse um alibi para fracassar, para não se comprometer realmente com nada e poder viver o capitalismo tranquilamente ao mesmo tempo que se diz anti-capitalista.

      • Rocha diz:

        O rescrever da História sobre parâmetros elitistas europeus é sem dúvida uma grande razão porque há Revoluções em muitos lugares do mundo e NÃO na Europa. A 1ª Guerra Mundial , por exemplo, não se deveu a “lógicas nacionais” mas sim à traição da social-democracia que traiu o movimento operário tomando o seu lugar entre os lacaios da burguesia que ostenta até hoje. A “lógica” da 1ª Guerra Mundial é a mesmíssima lógica do que chamam “construção europeia”, “federalismo europeu”, É O IMPERIALISMO e é uma agressão e uma ameaça tanto para os trabalhadores dos países europeus (nomeadamente aos periféricos) mas também aos trabalhadores e povos do mundo inteiro.

        Esse discurso bolorento do somos europeus, logo somos os donos da Revolução, é mais elitista e supremacista que sei lá o quê.
        Em primeiro lugar a Revolução em Moscovo não foi a Revolução na Europa, a Rússia é um país euro-asiático, muito mais asiático que europeu.
        Em segundo lugar se é verdade que Lenine falhou nas previsões que a Revolução se espalharia pela Europa – tal como Marx esteve ainda infectado pela cegueira elitista de que os países “capitalistas avançados” seriam os primeiros a fazer a Revolução – não é menos verdade que a Revolução se espalhou pelo mundo, reinventou, se coloriu e se enriqueceu com as aspirações de povos e culturas distantes.
        Nkrumah e Sankara com o Socialismo Africano, Gaddafi com a Jamahiriya baseada na democracia directa socialista, Nasser e Michel Aflaq com o Socialismo Árabe e o Baathismo, Zulfikar Ali Bhutto com o Socialismo Paquistanês. Tito com o Socialismo e Auto-gestão jugoslavos. Fidel e Che com a Revolução e o Socialismo Cubano. Allende com o Socialismo da Unidade Popular. A grande Revolução Chinesa e o Maoísmo. A grande guerra anti-imperialista libertadora do Vietname e a Revolução Socialista liderada por Ho Chi Minh.
        À volta do mundo e muito longe da Europa que só serve para colonizar, bombardear e oprimir fizeram não uma Revolução Socialista, nem um modelo de socialismo, mas sim várias revoluções seguindo vários modelos de socialismo com revolucionários a abrir caminho para a Revolução que foram mais longe ainda que Marx e Lenine. foram mais longe porque alcançaram a alma dos seus povos com a chama do socialismo e comunismo revolucionários apesar de todos os subdesenvolvimentos, feudalismos, fascismos, teocracias, monarquias, colónias, protectorados e regimes fantoche do imperialismo euro-estadounidense, ultrapassando enfim obstáculos realmente épicos que esta mesma rançosa Europa imperialista – agora ainda mais hipócrita e imperialista na zona Euro/UE/BCE – lhes pôs no caminho.

        • Mário Machaqueiro diz:

          Vamos por partes, que isto vai ser uma resposta longa (esperando eu que não dê origem a uma troca de desconversas):
          – Dizer que a 1.ª Guerra Mundial deflagrou na sequência do triunfo de lógicas nacionais ou nacionalistas não é incompatível com dizer que houve uma traição dos partidos socialistas ou social-democratas (na acepção que esta palavra tinha na altura) à causa internacionalista do movimento operário. Foi porque esses partidos capitularam perante as referidas lógicas, através das quais se realizavam os interesses concorrenciais das várias burguesias nacionais, que os trabalhadores europeus se deixaram arrastar para uma guerra totalmente estranha aos seus interesses de classe (que não aos seus delírios identitários, uma variável que os marxistas da época não estavam em condições de identificar).
          – Equiparar a “construção europeia” e o “federalismo europeu” à mesma lógica imperialista que presidiu à 1.ª Guerra é, no mínimo, muito discutível e, no máximo, redutor. Vejamos: a construção da União Europeia é, sem dúvida, e sobretudo desde o Tratado de Maastricht, um projecto marcado pelo programa neoliberal próprio da fase actual do capitalismo. E também admito que se trate de um projecto imperialista, pois assenta na transferência maciça de recursos financeiros dos países da periferia da Europa para os países norte-europeus, da mesma forma que se alimenta da nunca acabada exploração dos povos do “Terceiro Mundo” – a qual, não esqueçamos, permitiu o acesso de um conjunto muito limitado de nações aos níveis de riqueza dos chamados 30 anos gloriosos que se seguiram à 2.ª Guerra Mundial. Mas o “projecto europeu” (chamemos-lhe assim) não pode ser lido a preto e branco: ele possui virtualidades democráticas e emancipatórias que poderiam ser aprofundadas através de lutas políticas à escala europeia. É isso, julgo eu, que os autores de “Vias de Facto” ou do “Passa Palavra” defendem. A meu ver com razão. Pois a implosão da União Europeia e o regresso aos fechamentos nacionalistas pode estar prenhe, de facto, de pesadelos que neste momento mal conseguimos antever. Só a memória curta nos permite esquecer o que significaram as guerras identitárias em que este continente foi fértil ao longo da sua história e que, no séc. XX, adquiriram proporções antes inimagináveis.
          – «Esse discurso bolorento do somos europeus, logo somos os donos da Revolução, é mais elitista e supremacista que sei lá o quê.» Permita-me que lhe recorde que não sou eu que defende esse discurso. Ele era a tónica da posição dos bolcheviques em 1917 e 1918, baseado na ideia de que uma revolução socialista só poderia resultar nos países de capitalismo avançado que se situavam na Europa ocidental e cujo paradigma eram a Alemanha e a Inglaterra. Só posteriormente os comunistas russos se voltaram para os países e povos colonizados, e mesmo aí com um indisfarçado paternalismo que causou imensas tensões no seio da Internacional Comunista, levando, por exemplo, figuras como o dirigente comunista muçulmano (é verdade: houve muçulmanos comunistas) Sultan Galiev a considerarem que os comunistas russos tinham um programa de dominação imperialista sobre os povos do “Terceiro Mundo” (esta expressão ainda não existia, claro) em tudo semelhante ao programa imperialista dos países capitalistas europeus.
          – «A Revolução em Moscovo não foi a Revolução na Europa, a Rússia é um país euro-asiático, muito mais asiático que europeu.» Ainda bem que você já conseguiu resolver esta questão identitária que, no entanto, continua a dividir os russos e a produzir rios de tinta de discussão. Se tiver interesse, e se me permitir um bocado de auto-propaganda, esse problema da identidade russa e o seu impacto na Revolução de 1917 estão tratados nos dois últimos capítulos do meu livro “A Revolução Soviética, Hoje. Ensaio de releitura da revolução de 1917”, publicado na Afrontamento e que ainda circula por aí.
          – E agora entramos na zona mais delicada, por ser aquela onde mais me afasto de si. Não vou deter-me nos pormenores históricos daquilo que designa como “revoluções socialistas”. Seria obrigado, só para dar um exemplo, a referir o facto de o regime de Nasser, antes de se aliar à URSS e adoptar uma espécie de socialismo árabe, ter tido nos anos 50 antigos oficiais das SS como conselheiros e ter patrocinado, nos jornais oficiais, elogios a Oliveira Salazar e ao Estado Novo (isto está documentado no Arquivo Histórico-Diplomático e aparece analisado num artigo que publiquei na “Análise Social”). O que me preocupa mais é o elogio a processos revolucionários, que tinham na sua matriz aspirações generosas e emancipatórias (não ponho isso em causa), mas que, mercê de um processo de replicação em série, deram origem a sistemas sociais e políticos altamente opressivos – nalguns casos, como na União Soviética de Stáline, na China de Mao ou no Cambodja de Pol Pot, ultrapassando o que de mais malsão a mente humana consegue imaginar. Sob o peso de milhões e milhões de mortos, de milhões de famílias e de vidas destroçadas – posso dar os números para o caso da URSS stalinista, mas também posso relatar muitos casos concretos -, não seria tempo de a esquerda que continua a reclamar-se da revolução parar um minuto para pensar neste imenso horror e tirar daí as devidas ilações? Não é tempo de essa esquerda repensar, de alto a baixo, o que entende por socialismo antes de falar de revolução? Já fiz estas perguntas várias vezes e, como resposta, só tenho obtido os mais estafados lugares-comuns e a maior cegueira dogmática. E isso é, confesso, triste e assustador.

  3. miguel serras pereira diz:

    Caro Mário Machaqueiro,

    concordo com parte substancial do que diz. No entanto, duas observações preliminares:
    1. não creio que, a não ser por descuido ou excesso de ardor polémico, se encontre no Vias ou no Passa Palavra uma previsão da instauração, nas condições do momento, do fascismo em Portugal: pelo contrário, se bem me lembro, tem havido uma certa insistência em afirmar que tal é o cenário menos provável. Claro que, no caso de uma desagregação da UE e de uma explosão nacionalista generalizada na sua área, as coisas mudariam de figura: a militarização interna, o belicismo, a xenofobia exacerbada, etc., etc., passariam a ter condições ideais de desenvolvimento.

    2. É um facto que outros camaradas e eu próprio pensamos que a democratização libertária e federal da Europa e a sua constituição em pólo catalisador e aglutinador de uma resposta internacionalista à transnacionalização da economia política globalmente governante são um horizonte e uma perspectiva a promover e reiterar. Mas não creio que assumamos aqui uma posição de tudo ou nada. Daí que insistamos nas vantagens, não só para a extensão e aprofundamento da democratização, mas também para a oposição e combate defensivo contra a oligarquia europeia e global e a sua “desregulação”, de uma integração, nivelada por cima em termos de direitos e liberdades, da UE e da zona euro: integração política explícita, implicando e fundando uma integração fiscal, orçamental e (digamos assim) constitucional, que permita aos assalariados e conjunto dos cidadãos comuns da região um controle maior sobre os seus destinos e uma limitação efectiva do livre-arbítrio da actual camada politicamente dirigente e da absolutização do seu poder por via da ocupação dos postos de comando da gestão e direcção da economia.

    Dito isto, ainda que demasiado esquematicamente, parece-me racional no plano dos princípios (a construção de uma cidadania governante) e também razoável nas condições concretas do terreno a perspectiva que ontem resumi no Vias de Facto (http://viasfacto.blogspot.pt/2013/07/como-lutar-contra-austeridade-tendo-o.html), glosando uma análise que aflora numa intervenção do Frederico Aleixo, intitulada “O novo primeiro-ministro” (https://5dias.wordpress.com/2013/07/08/o-novo-primeiro-ministro/), que, aliás, mereceu também a sua atenção e comentários. Aqui fica, pois, como conclusão que, até ao momento, não vejo razões para modificar:

    ‹‹Importa-me sublinhar a conclusão límpida do autor do post quando afirma que, quanto àquilo que Paulo Portas e o governo remodelado poderão fazer, “[t]udo dependerá dos movimentos sociais, da onda de contestação e da ofensiva popular não só aqui mas em toda a União Europeia”. É que, embora Frederico Aleixo, talvez dilua um pouco a nitidez da conclusão ao somar-lhe outras considerações, relevando de níveis de análise menos fundamentais, a verdade é que, excepto no caso de uma erupção generalizada que não parece iminente, tudo o que qualquer governo — seja o de Passos Coelho e Paulo Portas, seja o eventualmente resultante de uma nova maioria parlamentar, seja o de uma improvável iniciativa presidencial — poderá fazer, para adoçar a austeridade ou para a combater com um mínimo de eficácia, “dependerá dos movimentos sociais, da onda de contestação e da ofensiva popular não só aqui mas em toda a União Europeia”, o que indica bem que, será tendo em vista a federação e a generalização dos “movimentos sociais” e da “ofensiva popular” ao nível europeu que a luta pela democratização deverá ser travada, denunciando como “divisionistas” e reaccionárias, no sentido próprio do termo, palavras de ordem como a reconquista da “independência nacional”, ou soluções como o isolacionismo, que quer fazer passar por revolucionária a solução de agravamento austeritário que seria a saída unilateral (e não há outra possível) da zona-euro. Por outro lado, estas mesmas considerações — embora Frederico Aleixo talvez aqui pense de outro modo — mostram o beco a que conduzirá a grande maioria dos cidadãos portugueses permitir que direcções partidárias e sindicais continuem a orientar o essencial das acções de luta para a realização de eleições antecipadas, na perspectiva de uma maioria parlamentar de “esquerda”, e, sobretudo, a conferir a objectivos análogos prioridade sobre a “auto-organização popular”, os “conteúdos sociais” e a criação de formas de intervenção colectiva democraticamente renovadas e alternativas››.

    Tal não significa que devamos absolver ou tolerar a acção do actual governo de capatazes, mas significa que uma simples mudança de governo pouco significará senão resultar do reforço das capacidades defensiva e ofensiva democraticamente organizadas dos cidadãoa comuns no terreno e em torno das suas condições de existência quotidiana. E, sem dúvida, significa também que o terreno e as condições de existência quotidiana que acabo de referir, sendo transnacionalmente impostas, é “federalmente”, ao nível da UE para começar, que podem e devem ser transformadas.

    Cordiais saudações democráticas

    msp

    • Mário Machaqueiro diz:

      Obrigado, Miguel. Não posso dar aqui uma resposta muito desenvolvida. Direi apenas, em síntese, que as lutas por vir teriam (terão) de ser travadas em diversas escalas: nacional, europeia e global. Direi ainda que deveríamos ter uma ideia clara sobre o mapeamento das responsabilidades e da estratégias: onde se situam os principais responsáveis, político-financeiros, pela estratégia global do capitalismo na fase actual? Porque eles têm rosto, correspondem a instituições e grupos organizados, etc. E actuam por objectivos globais claros: depauperar uma parte significativa das populações europeias, destruindo as suas “classes médias”, domesticar e rebaixar as suas condições laborais, controlar militarmente as áreas de maiores recursos energéticos, a começar pelo petróleo (e, em breve, também os recursos hídricos), etc., etc. Só o conhecimento desses actores e desses objectivos permitirá a contrução de um programa global alternativo, pautado por objectivos igualmente claros e com as estratégias e tácticas correspondentes. As esquerdas (porque há muitas), agarradas como estão a cadáveres adiados e a muita da mitologia política do séc. XIX – que o séc. XX descredibilizou em grande parte – estão a anos-luz de começar a fazer este trabalho. E por isso estão a ser derrotadas em toda a linha, sem sequer perceberem que o estão.

    • Nuno Cardoso da Silva diz:

      Miguel,

      Não é a primeira nem a segunda vez que noto a minha concordância com muitas das ideias que vens expondo nesta blogosfera. E não é a primeira vez que sinto a necessidade destas trocas de impressões na blogosfera darem lugar a uma estrutura menos virtual e com maior capacidade estratégica. Tu me dirás se isso existe, e onde…

      Concordando com a ideia do federalismo dos movimentos sociais à escala europeia, permito-me apontar a necessidade de começar essa tarefa no nosso próprio país, com um federalismo dos movimentos sociais portugueses. Coisa dificílima de fazer num ambiente de prima-donas, mas que terá de ser o primeiro passo. Por mais de uma vez apontei essa necessidade, no seio da Plataforma 15 de Outubro mas, para lá de alguns acenos de cabeça, nem um passo se deu nesse sentido.

      Um abraço

      Nuno

      • miguel serras pereira diz:

        Perfeitamente de acordo, Nuno. Quanto ao resto, aqui, no Vias ou noutros lugares, teremos ocasião de prosseguir a conversa, claro.

  4. Nuno Cardoso da Silva diz:

    O facto da “revolução” não ser isoladamente possível num pequeno país como Portugal, não significa impotência total. O facto de não podermos afastar liminarmente o sistema económico-político-social em que nos inserimos, não significa que não seja possível começar a subvertê-lo, nem que não seja possível amenizar a crise sem dele sairmos totalmente. Aliás essa devia ser a nossa prioridade: descobrir maneiras de melhorarmos a nossa situação e de enfraquecer a oligarquia local, sem entrar em ruptura absoluta com o sistema. Não porque se queira preservar esse sistema, mas porque não temos meios para, isoladamente, o destruirmos. Não é fácil mas é possível, e sobretudo exige uma enorme paciência e persistência. Coisas que os nossos auto-proclamados revolucionários não têm. Há ocasiões em que o veneno, mesmo de acção lenta, é muito melhor do que a bomba atómica. Mas os toscos só conhecem a força bruta…

    • Mário Machaqueiro diz:

      No essencial, concordo consigo. Mas também compreendo que a angústia que muita gente está a sentir seja pouco compatível com tácticas que requerem paciência e lentidão. Num outro “post” sugeri – e nem sequer é ideia minha – a reactivação das ciaxas mutualistas como forma de os trabalhadores deslocarem para lá as suas poupanças e descapitalizarem a banca privada, que sabemos ser hoje um dos principais centros do poder. É, julgo eu, um exemplo de como se pode ir minando o sistema sem se sonhar com bruscas rupturas revolucionárias que, aliás, nem programa claro conseguem ter (o que fariam a seguir à revolução? O “socialismo”? Mas eles sabem lá o que é isso!). O resultado dessa minha modesta sugestão é que fui logo crucificado nos comentários pelos tais “toscos que só conhecem a força bruta” e que, no seu infantilismo adolescental, sonham com a festa revolucionária que nunca conseguiram viver (a maioria já nasceu muito depois do 25 de Abril e da revolução conhece apenas as descrições).

  5. miguel serras pereira diz:

    Mário, concordo plenamente com a conclusão geral – e teremos outras ocasiões de discutir melhor todos estes assuntos. No entanto, duas observações mais:

    1. na sua conclusão, quando escreve que as esquerdas “estão a ser derrotadas em toda a linha, sem sequer perceberem que o estão”, eu leio, esperendo não sobre-interpretar demasiado, que ” estão a ser derrotadas e, sobretudo talvez, auto-derrotadas” — à falta de racionalidade e vontade democráticas.

    2. O texto de Robert Mundell citado pelo seu post mostra bem que a “autonomização” e “independência” da esfera económica e o primado político que assim a direcção antidemocrática da economia conquista têm por condição a ausência de integração política (orçamental, fiscal e constitucional) explícita, ao passo que essa ausência de integração contribui imensamente para o esvaziamento dos mecanismos defensivos e garantias fundamentais historicamente associados ao “governo representativo” (não esqueço que continua a ser necessário, na perspectiva da democratização, denunciar as insuficiências e os traços antidemocráticos estruturais dos próprios regimes representativos, mas esse é outro aspecto da questão, em que tenho insistido sempre, e que me dispenso de abordar aqui).

    • Mário Machaqueiro diz:

      Mais uma vez, subscrevo tudo o que diz, com especial destaque para a auto-derrota das esquerdas – ilustrada pela irracionalidade dogmática de alguns comentadores que passam por aqui…

  6. Rafael Ortega diz:

    Tão depressa dizem que não é preciso tornar a lei laboral menos rígida, comparando com as leis mais rígidas da Alemanha, como dizem que há uns tipos numa cave escura que estipularam que a única maneira de ser competitivo é desregular a lei laboral.

    Eu gostava muito de ter qualidade de vida holandesa ou finlandesa. Não consta que esses países não tenham serviços públicos ou que as leis laborais sejam uma selva.
    Mas se calhar têm os serviços que a produtividade do país consegue pagar. Talvez também sejam melhorzinhos porque 20% da população não vota em comunas, que acham que basta dizer não pagamos e aumentar salários por decreto.

    • Mário Machaqueiro diz:

      Pronto! Está descoberta a resposta: a culpa é dos comunas! Malandros que andam a dominar os governos deste país há mais de trinta anos! Ou serão quarenta?

      • Rafael Ortega diz:

        A esquerda quando não governa ganhando eleições governa com a constituição e o seu tribunal.
        Farto-me de rir quando os camaradas começam a vociferar com a política de direita. Não é possível em Portugal ter políticas de direita, não é legal…

        • Mário Machaqueiro diz:

          Dado o quadro em vigor, suponho que políticas de direita, para si, só de Hitler para baixo…

          • Rafael Ortega diz:

            Partido Social Democrata.
            Centro Democrático Social.

            Aumentos de impostos.
            Acordo vergonhoso com os professores, inventar tudo e mais alguma coisa como actividade lectiva para não haver horários zero nem despedimentos.
            Cortes paupérrimos na despesa.

            Isto não é direita, nem aqui nem em lado nenhum.

          • Mário Machaqueiro diz:

            Tem toda a razão. Direita é:
            Partido Nacional Fascista
            Partido Nacional-Socialista
            Falange
            União Nacional

            Impostos só sobre os trabalhadores, preferencialmente de classe média, para os manter bem drenados e domesticados, e redução drástica de impostos para os muito ricos (idealmente isentos de os pagar).
            Nada de acordos com quem faz greves, lutando pelo direito ao emprego e a condições laborais condignas. Grevistas todos para a pildra, como no tempo do saudoso Dr. Oliveira Salazar. (Parêntese para dizer que o seu comentário denota que não tem a mais pequena ideia do que se passa nas escolas, realidade que, logo por azar, tenho a desdita de conhecer bem).
            Por fim, acabe-se com a gratuitidade ou o apoio estatal na Educação e na Saúde, e destrua-se de vez o sistema estatal de pensões. Os reformados que não tiverem dinheiro, tiro na nuca. E os doentes que não puderem pagar, idem.
            Isto sim, é de direita!

  7. Simão diz:

    O texto do Sr.Machaqueiro é interessante mas, permita-me, penso que parte de uma permissa errada. Essa permissa parecer ser a de que existe uma espécie de “comité central” do capitalismo mundial que delibera e impoe soluções monolíticas e unívocas urbi et orbi.

    Não me parece ser esse o caso.
    Um exemplo: a forma radicalmente diferente como a crise tem sido enfrentada nos EUA e na Europa.
    Enquanto os líderes da UE (Merkel à frente) se contraem em esgares de pavor perante a mera hipótese de “eurobonds” e (oh…o HORROR!!!) de expansão de massa monetária (i.e, imprimir €€ o chamado “quantitative easing)….nos EUA a Reserva Federal imprime dólares como se não houvesse amanhã, numa abordagem completamente diferente da europeia.
    Há dias, num fórum, alguns americanos gracejavam dizendo algo que poderia ser traduzido como “qualquer dia acordamos e não temos uma moeda, temos um papel higiénico engraçado”.

    Retirando o carácter hiperbólico da “boca” o que é um facto incontornável é que os EUA têmadoptado uma política que, através da impressão/desvalorização da moeda tem permitido amortecer a crise por aqueles lados.

    Aqui acontece algo que muita gente insiste em não entender: o USD e o € não são comparáveis.
    O Dólar é uma moeda nacional, própriamente dita, com todos os meios técnico/financeiros que fazem uma moeda. O € nem sequer chega bem a ser uma união monetária…..é, apenas, uma moeda partilhada por um conjunto heteróclito de países, com economias e sociedades completamente distintas e, em larga medida, divergentes.
    Na altura houve quem alertasse para o cenário que agora ocorre mas, entre 2002 e 2008 (quando as vaquinhas pareciam “rechonchudas”) a oposição ao € (ou sequer à sua implementação desastrada e arquitectura defeituosa (o BCE não tem sequer as mesmas competências e poderes que qualquer outro Banco Central emissor de moeda) caiu em desuso. Toda a malta gostava do “aéreo”….pois é…mas o actual cenário era previsível e inevitável. A partilha de uma moeda forte por Estados tão distintos cavou esta brecha. Agora?! Agora vai ser muito complicado mas, o facto é que pergunto-me por onde andavam os “indignados” entre 2002 e 2008/9, enquanto a dívida pública (e privada) do páis disparava?!
    Porque é que ninguém protestou contra o endividamento galopante que, forçosamente, redundaria…”nisto”?
    Onde estavam na altura?! (no shopping, provavelmente, lol)

    Soluções?!
    Ou a Zona Euro dá uma pirueta de 180º e altera o funcionamente da moeda……ou esta irá desintegrar-se de alguma forma, com todos os riscos que formas desordenadas de colapso monetário podem ter para a Democracia.

    Voltando ao início: não existe “capitalismo internacional”. (co)existem diversos capitalismos transnacionais, não raras vezes antagónicos, e geridos de forma diferente.
    Seria bom perceber isto.

    • Mário Machaqueiro diz:

      Agradeço o comentário, que subscrevo na sua quase totalidade. Só com uma ressalva: estive a reler o meu texto e não encontro lá a premissa que refere. Posso ter dado a ideia errada, mas quando falo em capital transnacional não me esqueço de que o sistema mundial capitalista é composto por projectos antagónicos que disputam a hegemonia, com lógicas de gestão realmente próprias e diferentes, em rivalidade ou competição entre si – uma rivalidade que, aliás, tem contornos identitários, pois envolve a concorrência entre diferentes projectos de expansão e dominação identitária (política, económica, cultural e simbólica). O que me está a dizer significa que, na sua concorrência com a Europa, os Estados Unidos estão a desenvolver estratégias muito mais eficazes e inteligentes. Acho que o meu texto não é incompatível com esta leitura. Mas posso estar enganado.

    • João. diz:

      Essa sua ideia de que existem vários capitalismos transnacionais é a mais vulgar e a menos verdadeira – não me admira que o sr Mário tenha logo subscrito o comentário. Hoje há uns poucos de quadros, quase litreralmente “quadros” que regulam o capitalismo global: esses quadros são o que chamam os mercados – onde aparecem as taxas de juro das dívidas, etc. Quem controla esses quadros (as agências de rating e quem as controla, só para dar um exemplo, assim como alguns, poucos de governos, ou malta colocada em alguns governos considerados estratégicos) são muito poucos e é o que significa o capital transnacional. Agora isto não implica um quarto escondido de capitalistas a conspirar, ao invés, isto, estes mecanismos, devem ser vistos como uma evolução natural do capitalismo que tende para a concentração de riqueza e poder.

      Na Europa não é diferente. O passo natural do capitalismo na europa é concentrar poder precisamente para facilitar a vida ao grande capital: o que é que atrapalha desde logo: países, que existam muitos, cheios de eleições a perturbar o curso dos negócios. Então uma vez que se imponha uma qualquer espécie de federalismo que sirva para esvaziar de relevância as eleições nacionais está o trabalho feito. Pode até haver eleições à vontade que, como estas do Cavaco, o que não vai haver é verdadeira escolha.

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