Por que não brincam as crianças? Relações laborais, produção económica e bem-estar das nossas crianças.

preschool-depression-320«Vós não tendes o menor juízo», dizia no século XIX para um francês um membro da tribo Montagnais-Naskapi, do Canadá. «Vós, franceses, amais apenas os vossos próprios filhos; mas nós amamos todas as crianças da nossa tribo!»[1] Que diria hoje o membro dessa tribo se visse uma criança que sai de casa com uma playstation agarrada à mão e chega a casa de um amigo para brincar e ambos ficam agarrados à playstation ou à televisão? Haverá simbologia mais completa da submissão do ser humano à mercadoria?

Trinta e dois por cento das crianças portuguesas entre os 7 e os 11 anos têm peso a mais. Esta percentagem é, por exemplo, de 12% na Holanda e de 36% em Itália. Obesidade significa que estão hoje a ser tratadas nos hospitais algumas crianças com diabetes, hipertensão e há registos pela primeira vez de acidentes vasculares cerebrais (AVC) entre elas. O que irá significar a obesidade a médio ou longo prazo? O estudo que apresentou os resultados sobre a taxa de obesidade nas crianças, realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, destaca nas suas conclusões que há uma associação entre obesidade e/ou excesso de peso e «hábitos alimentares, a actividade física e os comportamentos sedentários».

Sabemos que Portugal é o 4.º país em que mais horas se trabalha em toda a União Europeia, mais de 42 por semana segundo dados oficiais – que estão aquém do trabalho real realizado, não contabilizado. E com salários em queda livre. Portugal tinha em 2012 custos laborais de 12,1 euros por hora trabalhada, substancialmente abaixo de metade da média da zona euro, que era de 27,6 euros por hora trabalhada.

O que tem o peso das nossas crianças a ver com o número de horas trabalhadas? E que relação tem o modelo económico de produção e reprodução da sociedade, enfim, a forma como vivemos, a ver com o bem-estar dos nossos filhos?

Não sabemos. Não existem projectos interdisciplinares, embora estejam em curso alguns cujos resultados deverão demorar alguns anos e que relacionam relações laborais, desenvolvimento urbano, alimentação, padrões de consumo. Se não sabemos ainda os resultados, temos porém já as questões. E estas devem ser postas de imediato ao conjunto da sociedade porque o tempo na vida é um dado adquirido e estas crianças vão ser adultos em breve.

O espaço livre engolido pela especulação imobiliária

A economia portuguesa foi determinada nas últimas duas décadas por uma explosão do sector imobiliário. Falamos de 1,5 milhão de casas vazias, sendo que talvez metade esteja em fundos imobiliários isentos de IMI, segundo Pedro Bingre do Amaral. O crescimento deste mercado fez da «minha casa a minha vida», reduzindo cada vez mais os espaços de afectos e de tempo à casa e ao núcleo familiar, também ele cada vez mais restrito, com frequência sem filhos ou com filhos únicos, por uma série de factores que aqui não abordamos. Por outro lado, as mercadorias chinesas inundaram os quartos infantis. Característica do desenvolvimento capitalista português tem sido também uma alta concentração de população nas cidades a par de um modelo assente no transporte individual – o carro – em detrimento do transporte público de qualidade. O resultado disto é que as crianças estão fechadas em casa e quando saem à rua estas estão dominadas pelos automóveis. Espaços outrora descampados das nossas infâncias são hoje ou estradas ou prédios ou estacionamentos.

A montante criou-se a teoria da necessidade de desenvolver a «motricidade fina»: desenhos, canções, jogos, enfim, tudo o que seja realizado dentro de um espaço fechado. Os colégios e escolas reduzem cada vez mais o espaço aberto, que é caro. As crianças ficaram reduzidas a espaços minúsculos (parques), todos idênticos e em geral normalizados (o mesmo escorrega de Norte a Sul do País), altamente restritivos da brincadeira. Carlos Neto, presidente da Faculdade de Motricidade Humana, classifica de «analfabetismo motor» o fenómeno que tem investigado. As conclusões são preocupantes: as crianças correm e tropeçam nos próprios pés, não andam para trás de olhos fechados sem perder o equilíbrio, têm um sentido de orientação limitado, etc. «Brincar na rua é em muitas cidades do mundo uma espécie em vias de extinção. O tempo espontâneo, do imprevisível, da aventura, do risco, do confronto com o espaço físico, natural, deu lugar ao tempo organizado, planeado, uniformizado (…) com implicações graves na esfera do desenvolvimento motor, emocional e social», diz o investigador.

A visão idealista que aponta como causa para o medo dos pais de deixarem as crianças estar na rua é isso mesmo, idealista – a cultura tem na sua base mudanças estruturais bastante mais complexas do que a ansiedade do filho único. Na Holanda os carros não podem circular nos bairros a mais de 30 km/h – e não o fazem; em Viena há bairros inteiros onde os carros são proibidos. Os horários escolares incluem, em alguns destes países, várias horas por dia de brincadeira livre, enquanto em Portugal são horários de adulto numa fábrica – 8 ou mais horas por dia na sala de aula, explicações, apoio ao estudo, ATLs, muitas vezes seguidos ainda de trabalhos de casa. As nossas crianças não ficam mais inteligentes por isso. Mas aparentemente ficam, também por isso, mais gordas. E é só de obesidade que falamos?

A tecnologia como fim – a babysitter gratuita

A televisão/computador jogam hoje um papel central no espaço do lar. Não é necessariamente verdade que esta seja uma forma de prolongar horários de trabalho porque o recurso a ela também diminui o recurso a outras formas de estar. Ou seja, uma criança que não está a ver televisão tem de estar a fazer outas actividades, que exigiram um maior esforço por parte dos educadores. A televisão é um descanso para pais cansados ou desmotivados ou simplesmente preguiçosos. Mas isso não tem consequências? A revista norte-americana Pediatrics diz que há uma relação entre hiperactividade e excesso de televisão/computador. Aos leigos explicam que horas em frente desses aparelhos provocam excitabilidade nas crianças. O que é um facto é que hoje esta tecnologia tem um espaço dentro da vida das crianças absolutamente inusitado. São horas que antes eram de brincar, correr, pular, jogar, em que hoje as crianças ficam numa situação passiva. Não jogam à bola mas vêem os bonecos na televisão jogar à bola, não correm mas vêem no computador as personagens virtuais correr. A «coisificação» das nossas crianças engolidas pela magia da mercadoria fá-las-á mais felizes, mais cultas, mais seguras? Observamos que toda a tendência de desenvolvimento actual é a da substituição do trabalho vivo (pessoas) por trabalho morto (máquinas). É isto que está acontecer às crianças? Há ou não uma relação entre hiperactividade (hoje medicada com ritalina sem que ninguém possa negar peremptoriamente que este medicamento não terá a médio e longo prazo consequências graves) e falta de actividade física, livre?

Mercantilização do brincar

Há uns anos um grupo de antropólogos na Noruega foi saber a que brincavam as mães com as crianças a seguir à II Guerra Mundial. As mães não se lembravam. Nenhuma mãe se lembrava. Concluíram os antropólogos que a razão era porque as mães não brincavam com os filhos – o que é natural desde logo porque o ritmo e as exigências das crianças são muito distintos dos dos adultos. Os filhos delas brincavam uns com os outros.

Quem gosta de jogar ao berlinde conhece as regras do jogo. Se não o berlinde é uma bolinha que ao fim de muito pouco tempo aborrece. O jogo é algo muito para lá do objecto, é um conjunto de regras e desafios. Hoje uma parte das crianças não brincapropriamente, vê os outros brincar (na televisão, no computador) ou brinca sozinha, no núcleo familiar. Uma parte delas tem o privilégio de ter acesso à brincadeira empresarializada: campos de férias, clubes de surf, futebol com professor, etc. Ou seja, quem paga pode ainda ter os filhos a brincar. Transformou-se um bem colectivo (brincar na rua com regras e desafios e até alguma protecção transmitidos dos mais velhos para os mais novos, gratuitamente) num bem comerciável, a brincadeira enquanto prestação de serviços.

Sabemos pela biologia o papel que tem o brincar no desenvolvimento dos mamíferos. Aprende-se a cair caindo. Porém, o brincar não é só a experiência da repetição, da tentativa e erro. É mais do que isso. O brincar implica o desenvolvimento colectivo, social. Uma criança que brinque muito com os amigos saberá em princípio gerir melhor os conflitos com esses amigos ou com amigos futuros porque foi confrontada com o outro, a existência e as vontades dos outros. Foi confrontada com os desafios do confronto e da cooperação. As brincadeiras estabelecem às vezes hierarquias e domínio, mas mais que isso definem espaços de amizade, solidariedade, aprendizagem, iniciativa, coragem.

Alimentação não são só calorias

O bem-estar é também antes de mais a alimentação. Parte da produtividade do trabalho tem sido conseguida por um rebaixamento dos salários reais, isto é, quem vive do salário, e seus filhos, vive pior… e come pior. O que era uma alimentação normal há uns anos – peixe fresco, galinha do campo, fruta, legumes – passou a ser gourmet, isto é, deixou de estar, em geral, ao alcance dos trabalhadores que vivem do salário. O consumo de papas aumentou 7% com a crise. Os Portugueses têm uma alimentação hipercalórica – média de 3883 kcal por dia – rica em hidratos de carbono, pobre em peixe e carne, proteínas de origem animal, essenciais, porque são de digestão lenta e indispensáveis ao sistema nervoso. Recorde-se que esta questão está directamente ligada ao modelo económico pós-troika: baixos salários e muitas exportações. Isto significa que tudo se exporta mais barato (porque custa menos a fazer) mas pouco se compra aqui (porque os salários não o permitem).

Em 1975 um tal Movimento Ecologista Português realizou uma manifestação, pequena, no Rossio, em Lisboa, onde um jovem barbudo subiu à estátua de D. Pedro IV, e discursou: «Chamam-lhes as doenças da civilização, mas nós chamamos-lhes doenças da barbárie!» Pessimismos à parte, é um facto que há duas décadas Tom Sawyer era um herói, destemido, amigo, desafiador. Hoje, tantas vezes, o herói é o irmão dele, Sid, impecavelmente vestido, sem um roto ou sujidade, aluno exemplar, obediente aos pais, ansioso por agradar, com medo da própria sombra…

[1] Cit do investigador Sérgio Lessa.

Jornal Expresso, 1-2-2014

http://www.ulisboa.pt/wp-content/uploads/Porque-não-brincam-as-crianças.pdf

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2 respostas a Por que não brincam as crianças? Relações laborais, produção económica e bem-estar das nossas crianças.

  1. JgMenos diz:

    «O espaço livre engolido pela especulação imobiliária»
    Não seria mais adequado referir a corrupção autárquica e a incúria governamental?

  2. Mesmo estando à espera disso, não deixa de ser curioso como quando aqui venho ao 5dias sinto sempre uma certa surpresa na concretização do estereotipo de que a esquerda não sendo possuidora de todos os pilares morais ( é assim uma versão simplista) e somente dos dois que são normativos e prescritivos (harm/care; Fainess/equality) anda em loop nessa narrativa. Humm. só uma curiosidade.

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