No caminho para a escola, era certo como dois e dois serem quatro: um grunho qualquer havia de me rosnar “ah, boazona! fodia-te aqui já toda!” ou “que boa boquinha pró meu caralho” ou outra delicadeza semelhante. Nos dias piores vinham em grupo e riam-se muito, noutros chegavam mesmo a tocar-me. Que mal tem uma mão a roçar o meu braço? O mal suficiente para me deixar com vontade de lixar a pele até sair todo o asco.
(…)
Anos mais tarde, em conversa com um amigo a propósito de um ksssssss! que me fora ciciado demasiado perto do ouvido, ele achou que eu estava a exagerar. Mas depois foi conversar com a sua mulher, que atravessara a adolescência com copa C, e ficou inteirado. E chocado. Nem durante a gravidez a respeitaram, e muito menos com um recém-nascido ao colo. O marido não se dera conta de nada disso.
A nossa sociedade não repara no que fazem às raparigas mal o seu corpo começa a ganhar formas de mulher. E prefere ignorar que, no espaço público, as mulheres são repetidamente sujeitas a frases humilhantes e intimidatórias. Diz que são piropos, fazem parte do folclore nacional, dão mais colorido à rua – e quem não gostar, que se defenda.
(…)
Pergunto-me porque é que algumas pessoas (por cuja seriedade na discussão de ideias tenho, e mantenho, o maior apreço) estão a bagatelizar e a ridicularizar este tema, perguntando “que mal tem fazer um elogio a uma desconhecida?” como se fizessem questão de ignorar que o que está em causa são atitudes de intimidação das mulheres.
Mais: a que propósito se tenta deslocar a questão para um eventual problema que as mulheres terão com o seu próprio corpo, ou para os guetos ideológicos (serão marxistas compulsivas…), e sabe-se lá que mais?
Também não percebo porque é que, em nome do feminismo, se afirma que este é um problema que cada mulher saberá resolver, e que fazer dele tema de debate chega a ser ofensivo para as mulheres. Equiparo estes ataques aos das frases racistas e homofóbicas – porque é que não havia de ser um problema tematizado pela sociedade? E alguém se lembraria de dizer que uma frase racista largada na rua contra uma pessoa de pele escura é um problema que aquela pessoa tem de saber resolver sozinha, ou ignorando, ou metendo o agressor na ordem, nem que seja com uma bofetada? Vá, não brinquem comigo.
(o resto do post também é muito recomendável, e pode ser lido todo aqui)
O assédio sexual, cá para mim, é assédio moral e, cá para mim, o assédio moral é uma agressão psicológica e a agressão psicológica é uma agressão e a agressão é crime. Está no código penal. No nosso, o português. Mas como as pessoas falam até parece que a agressão que está no código penal, não abrange a agressão psicológica e que o assédio não tem nada a ver com esta… e eu não sou jurista. Mas, cá para mim, assédio sexual é assédio moral e é agressão.
Eu não sou a favor da criminalização destes comportamentos, nem acho que o direito penal seja uma solução, não é isso que defendo. Parece-me que a solução passa por uma mudança de costumes e por uma censura social clara deste tipo de comportamentos – que não, não são piropos nem manobras de sedução. Para isso era preciso que começássemos por admitir que o problema existe, mas a avaliar pela maioria das reacções, ainda não estamos lá.
“O problema existe”. Qual problema?
Caríssima Morgada.
Serão mil anos de silencio a criar surdos!? O retrato, ali, parece-me demasiado expressivo!! A caneta traiu o peito!! Em cem anos de rua, que levo nos pés, nunca assisti a tamanho grotesco, não digo que não exista ou que seja singular, é possivelmente possível. Há impressões do grotesco, no quotidiano, que ultrapassam esse retrato em porções que nem a mais refinada metafísica poderia explicar, retratos subliminares do execrável. Contudo, nas andanças do piropo, o padrão não andará por ali. Esta, a que dali nos trouxe, é a expressão de uma alma atormentada num descaminho de mau gosto. Um pobre tonto. Era de vergastar o tonto e, seguidamente, instruí-lo em como dirigir e quando dirigir a palavra de encanto e desejo súbito. Estou em crer que assim ocorre.
Como é evidente, caríssima Morgada, não vou desdenhar de um elementar bom senso. Todavia, transcorrer do piropo para a fenomenologia do piropo e daí para a construção do socialismo, relação de poder entre masculino e feminino, cotas de pesca do bacalhau e touros de morte em barrancos parece-me manifestamente descabido.
Um bem haja para si e para o caríssimo Vidal,
Já cá faltava a inteligente comparação de uma histeria inventada com os pés com as ofensas racistas. Os exemplos que a cara articulista refere não são de piropos, são da mais baixa ordinarice. Confundir tal com um galanteio de bom gosto é o mesmo que confundir um sorriso com um murro na boca. Em toda esta discussão, há algo que as boas e irascíveis almas do suposto correcto e militante pensamento têm esquecido: a sociedade portuguesa e os homens que nela vivem sofreram, desde o 25 de Abril de 1974, uma espantosa evolução no que aos costumes e aos comportamentos diz respeito. Para melhor. Para muuuuito melhor, diria. Eu, francamente, não vi neste país onde vivo e nos últimos 25 anos, homens que se comportassem dessa forma tão vergonhosa. Mas, lá está, devo ter andado distraído e devo ter deambulado pelos sítios errados ( ou certos ). Boa e tolerável era a situação antes de 74 em que as mulheres eram, basicamente, “coisas” ao dispor dos homens. É o que dá a falta de memória e de conhecimento factual ou histórico do passado: quando não há termo de comparação, qualquer minúsculo montículo nos parece uma imensa montanha. E ele há muito “revolucionário” que precisamente por não fazer a mais pequena ideia do que seja a revolução, ouve em cada fogo fátuo de uma qualquer propalada idiotice dita “progressista” as trombetas da revolução que a passos largos se aproxima. O resto é só uma pequena amostra da confusão que vai em certas cabeças, confusão essa que não deve ser levada muito a sério de tão risível que é.
ah! então o problema é a semântica…
Não, o problema nada tem a ver com questões semânticas. O problema tem muito a ver, isso sim, com o destrambelhamento que por aqui vai por certas cabeças. Se recalcamentos e complexos e o mais desastrado oportunismo político fossem sólidos alicerces de leis, mais valia voltarmos à Idade da Pedra, pois toda a evolução da Humanidade ( e desta pequeníssima porção dela que em Portugal vive ) a ela posterior para nada nos teria servido. E quanto ao mais, sabe o que digo eu às boas e sensíveis almas que gritam a plenos pulmões a sua revolta contra a intolerável e vastíssima e omnipresente ditadura semântico-sexual que o luso macho lhes impõe? Rapo do “Aviso à Navegação” do Pessoa e humildemente lhes aconselho: “- Ó meninos ( e meninas ), tenham juízo e… divirtam-se!”
Devemos então assumir que nada disto existe porque o imbondeiro, de patrulha 24 horas por dia em todas as ruas de Portugal no último quarto de século, não viu nem ouviu nada? O post da Helena Araújo era precisamente sobre a forma como estes ataques sistemáticos às mulheres são ignorados socialmente ou branqueados como piropos inofensivos – e classificar as reacções de desagrado das mulheres como histeria é uma “charge” que está para as discussões sobre as mulheres como a lei de Godwin para as discussões na internet.
Registo também que acha que as mulheres se devem dar por satisfeitas porque antes era muito pior – é isso? Fale a sério.
Como a invejo, caríssima Morgada de V.! Não tendo eu o condão da omnipresença, como, e muito bem, a senhora agudamente ressalvou, muito gostaria eu que me desse a receita de como tornar uma experiência pessoal e intransmissível no alfa e no ómega da bitola onde se medem todas as relações homem/mulher aqui do luso rincão.
E, por favor, não me tente enlear nessa tão particular forma de (pseudo)discussão que é o “tremendismo” que por aqui pegou de estaca. Com efeito, “sistemático” é aquilo que acontece por sistema. Quer a caríssima Morgada de V. então afirmar que não põe pézinho na rua mulher portuguesa que não seja alvo das mais baixas ordinarices do mais próximo luso homem? Agora sou eu que lhe peço que fale a sério, por favor. E essa manobra de inverter o meu argumentário não pega: o que eu afirmei foi que a evolução do homem português foi notável; e mais, agora, afirmo – gente como a senhora dá notícia de um Portugal que não houvesse passado por essa evolução. E tal notícia ou é fruto da cegueira ou é filha da conveniência retórica ou é rebento de cristalizadas visões passadistas. Há quem desejasse que fôssemos, como hei-de dizer?, mais “nórdicos”, mas creio que tal é impraticável: não se mudam países de latitude e a História sempre tem o seu peso. Mas descanse, há sempre a hipótese da compra de um bilhetinho de avião a preço módico… E sim, minha estimadíssima senhora, quando a uma ínfima ameaça ( e até, neste caso em questão, uma suposta “ameaça” magicamente retirada da cartola dos temas político-pirotécnicos tão ao gosto da avançadíssima malta do BE ) corresponde uma despropositada reacção, a isso, à falta de melhor designação, chama-se “histeria”. Mais uma vez afirmo: recalcamentos e complexos não são base para leis, quando muito são úbere terra amanhada por psicólogos, psiquiatras e “escritores” de livralhada de auto-ajuda. Os meus mais sinceros cumprimentos.
Nem eu nem a Helena Araújo defendemos a criminalização. O direito penal não é nem deve ser solução para tudo, mas isso não deveria impedir-nos de discutir um problema que condiciona a liberdade das mulheres. Vivo há 13 anos no estrangeiro, num país em que posso sair à rua sem ser agredida verbalmente, e sim, é infinitamente mais confortável do que em Portugal. Mas indicar a porta de saída a todas as mulheres que não gostam, vá lá saber-se porquê, de ser alvo de bocas ordinárias, é chutar para canto e tentar calar quem se queixa: “Quem está mal, mude-se”.
No mais, o imbondeiro confirma, em justificações dinâmicas que mudam a cada comentário, que o assunto é desconfortável: primeiro não existia um único homem que alguma vez tivesse, nos últimos 25 anos, mandado uma boca ordinária a uma mulher; a seguir reclama prova de que estejam todos implicados para admitir o fenómeno – que, à cautela, a existir, será sempre fruto de “recalcamentos e complexos” das mulheres, que não sabem lidar com os “comia-te toda” que o imbondeiro nunca ouviu. Faz lembrar aquela anedota da violação: as mulheres são violadas porque não colaboram.
Mas porquê parar por aí? Porque não voltar aos tempos da condenação social do adultério? Lembram-se do adultério que costumava ser um dos mais graves crimes. Não me diga que o adultério não humilha também quem sofre o peso do par de cornos? Nesta história dos moralismos todos e todas têm de telhados de vidro.
Oiça: quem faz analogias espúrias sempre que isso lhe convém é a caríssima senhora. E mais: quem está mal, sente-se mal porque há uma efectiva razão para o seu mau-estar. Não é o caso desta patranha inventada por quem não tem mais nada para fazer e pretende mamar da sempre generosa teta do “progressimo social” e dar vasão aos seus ódios de estimação. Quanto ao facto de olimpicamente ignorar a evolução sociocultural do homem português, quanto a isso nada disse, revelando a sua aguda compreensão do que é, hoje, a sociedade e os homens portugueses. Deve ser o resultado de 13 anos de vida no estrangeiro…
A seriedade e a oportunidade deste tema, bem como os seus pergaminhos de “premente problema social”, estão bem patentes na fina subtileza e no magnífico equilíbrio dos seus textos anteriores: um “must” de ideias feitas e de semântico “choque e pavor”. E sabe que mais? Quando quero ver algo a rodar sobre o seu próprio eixo, sem que do mesmo sítio saia, lanço o pião. É agradável e… não chateia. Quanto ao mais, só me lembro de um excelente filme de Samuel Fuller, de seu título “Cão Branco”: é que se o alvo de biliares ódios não fosse o magno problema do piropo ( e dos homens portugueses, esses javardolas ), seria outra treta qualquer ( desde que metesse homens, preferencialmente portugueses ). Que passe a excelentíssima senhora muito bem, são os meus mais sinceros desejos.
Morgada! Long time no speak… o clube de fãs estava quase, quase a entrar em greve de fome.
Quanto ao tópico em debate, sempre pensei que o trolha-ó-filha-comia-te-toda e o Petrarca-S’ amor-non-è-che-dunque-è-quel-ch’-io-sento?-Ma-s’egli-è-amor-per-Dio-che-cosa-e-quale? querem dizer exactamente o mesmo. Simplesmente, o trolha não é capaz de escrever sonetos e o Petrarca era.
O trolha merece um bufardo bem aviado no focinho? Claro que merece: a poesia é uma necessidade básica.
Ciao, Giovanni! 🙂
E calhando o Petrarca de Massamá ser piegas e queixar-se de ofensa à integridade física, estará o bufardo livre de sanção penal, ao abrigo da licença poética?
Abraço não solicitado,
m.
Resumindo: http://www.blogger.com/comment.g?blogID=7756916012746014267&postID=3017033809521019717&isPopup=true
🙂
Querida Morgada, pela primeira vez na vida parece que discordamos. Há sempre uma primeira vez 🙂 Primeiro, a conversa sobre a conversa de trolha parece-me que chega tarde: com a crise na construção civil já são muito poucos os representantes da classe. As traduções de Petrarca para vernáculo (para citar Lisboa) estão consideravelmente em baixa. Os apalpões nos eléctricos também, talvez porque há cada vez menos eléctricos (parece que agora é mais comum levarem a mão à carteira… e não ao rabo). Permito-me, pois, perguntar: onde estavam a Adriana Lopera e a Elsa Almeida quando precisávamos mesmo delas? Em 2º lugar, a questão é mesmo criminalizar. Equiparar o piropo a assédio sexual significa isso mesmo. Até porque o assédio sexual já é crime. Em 3º lugar, querer criminalizar o piropo significa, do meu ponto de vista, equiparar o roubo de um pêssego na mercearia ao assalto a um banco (abstenho-me de valorização dos exemplos dados). Uma coisa é o assédio em ambiente laboral (por exemplo) que significa um exercício de poder que pode ter consequências nefastas. Outra coisa é um piropo (estamos a falar dos ordinários, não estamos?) na rua que se fica pela poluição sonora sem mais. Acresce ainda que a ideia de “Engole o teu piropo” corre o risco de levar o bebé com a água do banho: então e os piropos simpáticos? Ou só se permite piropos aos falantes elaborados, inteligentes, capazes de frases cheias de wit? Não acho bem. Se começamos a mandar calar as pessoas que dizem coisas de mau-gosto, isto é capaz de ficar demasiado silencioso. Finalmente, proponho que em vez dos piropos dos trolhas que, como defendi aí em cima me parecem em risco de extinção, as proponentes do BE debatam o facto de os jovens, de todas as origens sociais, assinale-se, e de ambos os sexos, se tratarem entre si como verdadeiros trolhas. É vê-los à noite na rua e ouvir os pró-caralho que com tanta ternura se mimam eles e elas. O mundo pula e avança e não sei se na direcção certa. Quanto aos piropos, acho que se devem educar as pessoas para se defenderem autonomamente dos cretinos com quem eventualmente se cruzem na rua, em vez de andarem sempre a chamar a polícia. Dito isto, gosto de ver de novo por cá. 🙂
Olá, Ana. Não sei o que a Adriana Lopera e a Elsa Almeida propõem: eu sou contra a criminalização – já o disse aqui várias vezes -, mas não é por isso que temos de achar graça à coisa. E não fui eu quem disse que os trolhas tinham o exclusivo das bocas nas ruas: é um costume que está bem disseminado.
Curiosamente, já que falas neles, os trolhas portugueses obrigados pela crise a ir para o estrangeiro (leia-se para países onde mandar bocas a mulheres não é socialmente aceitável) portam-se substancialmente melhor que na pátria, modificando sem dificuldades nem traumas comportamentos que alguns pretendem ser endógenos do macho lusitano. Ou isso, ou estou a ficar velha. 🙂
Abraço,
m.
Morgada, deixe que lhe conta uma situação ocorrida, há cerca de 40 anos, na rua se Sta. Catarina, no Porto. Nesta rua, circulavam, diariamente, centenas de mulhres. Era um mercado fértil para os marialvas mostrarem a sua valentia na arte do “piropo”. Era diário, isto é, uma mesma mulher tinha que ouvir as parvoíces daqueles tarados vezes sem contas. Um dia, uma delas, costureira numa das lojas da rua, já saturada. de tanto “piropo”, resolveu golpear com uma tesoura a cara de um deles, após mais um. Como foi agressão, foi julgada, condenada a 3 meses de cadeia, pagou a indemnização e custas do processo.
A minha questão é esta: será que se este tipo de intimidação,a que chamam piropo, fosse criminalizada (ofendida poderia apresentar queixa) esta situação de duplo prejuízo para a mulher, não poderia ser evitada?
Para terminar, continuo a pensar que o marialvismo não se trata de uma questão cultural, mas de uma relação de poder, do mais forte sobre o mais fraco. Não tenho dúvida que se o marialva souber que após o “piropo” leva com um ferro na cabeça ou com uma tesourada na cara, mete o “piropo” no cú, ou vai dizê-lo à sua mãezinha.
Cmpts
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No caso que o Fernando descreve os agressores eram, ao que percebi, o mesmo grupo de homens. O problema é que para a generalidade das mulheres o assédio é mais difuso, o que põe vários problemas, a começar pela imputabilidade: não é uma boca foleira, não é um homem, é acontecer onde quer que vão, com homens diferentes, criando um clima de intimidação que as leva a adoptar comportamentos instintivos e inconscientes, como atravessar a rua para evitar um grupo de homens mais à frente, ou fazer um desvio para não passar por uma rua que encurtaria o caminho mas está cheia de potenciais “xedutores” – e nestes casos, que sentido faria o procedimento criminal? Apresenta-se queixa contra todos, todos os dias? Senta-se a sociedade no banco dos réus? Uma boca ordinária, isolada, não passa de uma bagatela (dificilmente aceitaríamos que aquele acto, considerado individualmente, lesa, com um mínimo de relevância, um bem jurídico digno de protecção penal); o problema é que não é só uma, são muitas, e o clima de medo que geram. Isto sem prejuízo, como é evidente, de haver comportamentos que se enquadrem em crimes que estão tipificados, como o crime de injúrias, ameaça, coacção ou os crimes contra a integridade física, ou de haver casos em que o nexo causal entre o agente e a acção seja evidente, ou em que há de facto uma lesão intolerável de bens jurídicos protegidos.
E concordo inteiramente que o problema é de relações de poder: invadir o espaço das mulheres desta forma tem menos a ver com sexualidade que com demonstrações de poder. É uma forma de silenciar e humilhar as mulheres, punindo a ousadia (sempre ameaçadora para machos inseguros) de terem saído à rua sozinhas.
Um fenómeno curioso, pelo menos na minha experiência fora de Portugal (admito que noutros países seja diferente), é a aculturação progressiva de imigrantes vindos de países onde a agressão verbal às mulheres é frequente e tolerada. Não há, no país em que vivo, nenhuma lei que os proíba de assediarem verbalmente as mulheres, mas há pelos vistos (e precisaríamos de um sociólogo para explicar isto) informação não escrita e sinais inequívocos de que estes comportamentos não são socialmente aceitáveis – e tanto basta para que os nossos marialvas percebam que não, não podem insultar as mulheres no espaço público. Em contrapartida, em casa, onde a censura social não chega, os números da violência doméstica continuam a ser muito superiores aos dos autóctones.
Há piropos e piropos e aqui no Porto então a dose é de farta brutos. Perante esta pérola: “Ó morcona comia-te o sufixo”. Mas uma senhora é uma senhora, é uma senhora e finge que não ouve e mais adiante esboça um sorriso pois o brutamontes percebe de derivação
Esta colecção de comentários é uma antologia das desculpas de mau pagador clássicas: faltava o bordão “mulher honrada não tem ouvidos”. Obrigada, maguedes, acho que já não falta mais nada.
Falta, falta. Ouvir aos 13 /14 anos: “Toda a vida fui eletricista e nunca vi um fio de eletricidade a andar” é avassalador. E bordão de “mulher honrada” não me assiste de todo. Bordão só mesmo para desancar aficionados tauromáquicos e quejandos.
Se calhar escapou-me a ironia e percebi mal, maguedes.
Morgada, eu continuo na minha. Esta conversa dos piropos dos trolhas chegou com pelo menos 10 anos de atraso.
Sim, onde estava o BE quando eu tinha 13 anos? 😉
Mas olha que eu não acho nada que isto seja exclusivo dos trolhas. Algumas das coisas mais ordinárias que ouvi vieram de insuspeitos velhinhos reformados, de patos-bravos e de colegas do liceu.
Porque é que ouvir:
“Oh boazona, comia-te já essa cona!”
é pior do que:
“Oh meu artolas, partia-te já essa cara de estúpido!”
Estaremos a confessar que as alusões sexuais nos incomodam mais do que quaisquer outras alusões ou ameaças físicas? Estamos a reconhecer que somos uns parolos burgueses, com tiques vitorianos? Estamos a dizer que continuamos condicionados pela moral burguesa, e que as meninas não tocam no pi-pi e os meninos não devem bater umas na casa de banho?… Só assim se compreende que se queira dar um tratamento especial às ordinarices que passam por piropos. Se estivéssemos totalmente livres de tabus sexuais não precisaríamos de tratar os piropos ofensivos de forma diferente de qualquer outra ofensa verbal. No fundo as nossas feministas são uma púdicas a fingir de emancipadas.
“Partia-te a cara” (deixemos de lado a injúria associada) pode constituir um crime de ameaça, e é irrelevante para a qualificação se há ou não intenção de a concretizar: basta que as ameaças sejam de molde a provocar medo ou inquietação, segundo o nosso código penal. “Comia-te já essa cona” parece uma ameaça de violação: que uma mulher que ouça uma coisa dessas e não goste seja ainda por cima acusada de púdica, é o cúmulo da desfaçatez. Não estou certa de que se lhe disserem na rua que adoravam rebentar-lhe esse cu, várias vezes por dia, o Nuno Cardoso da Silva esteja à altura da pseudo-desinibição sexual que prega aos outros.
O meu argumento é que uma agressão verbal com conotações sexuais não é diferente de qualquer outra agressão verbal. Não se trata de gostar ou não gostar. Trata-se de não tratar diferentemente coisas que são essencialmente semelhantes. Ao focarem a sua atenção apenas nas agressões verbais com conotações sexuais as feministas estão a dizer que lhes atribuem uma gravidade especial, provavelmente porque são dirigidas normalmente a mulheres. Ou seja, querem que as mulheres tenham um tratamento especial, o que parece contrariar o próprio sentido do feminismo.
O Nuno Cardoso da Silva vai um dia na rua, tem 13 ou 14 anos, quando um desconhecido lhe diz que tem cara de estúpido e que adorava partir-lhe o focinho. Pode decidir apresentar queixa por injúrias e ameaças, ou pode decidir que foi uma vez sem exemplo, e apesar do medo e do desconforto, ignorar o ataque. Uma semana depois, numa zona diferente da cidade, gritam-lhe “ó cara de estúpido, anda cá que te vou desfazer esse focinho”. Medo, duas vezes na mesma semana, what’s going on with the world? Mas a partir daí acontece-lhe mais vezes. A caminho da escola, chamam-lhe “estúpido” ou ameaçam partir-lhe a cara. Por esta altura, não é preciso ser paranóico para começar a pensar: “Mas terei cara de estúpido? E a ser assim, que culpa tenho eu de parecer um imbecil?”. Passa a usar óculos escuros, compra um chapéu, tenta fazer cara de inteligente, olha para o chão, evita grupos de pessoas, muda de percurso e de passeio, mas as coisas não melhoram: “Olha-me os óculos deste ganda estúpido”. As pessoas riem-se. Um dia na rua agarram-lhe no queixo e dizem-lhe “coisinha mai’linda, olha-me esta cara de estúpido”. Outras vezes, encostam-se a si e rosnam-lhe “troncha de imbecil”. Fazem-lhe gestos: dois dedos na boca (vómito?), apontam para a cabeça, fazem olhos esgroviados. Há quem diga que é tudo inofensivo e que está a fazer uma tempestade num copo de água: se quisessem fazer-lhe mal, não lhe gritavam no meio da rua, em pleno dia, e é até é ternurento que reparem em si. É um maricas por ficar tão ofendido. Ou por não responder à letra (as opiniões dividem-se). Certo é que a culpa é sua. Se calhar, se não andasse a exibir a sua cara de estúpido na rua, isso não acontecia, não era? Você provoca as pessoas inteligentes com a sua fronha de idiota. E alguns dos comentários até eram bem-intencionados, você é que é hiper-sensível, histérico, tonto – olhe, estúpido. “Ah, as coisas que eu adorava fazer-te a essa cara” não é propriamente ameaçador, pois não? “Adoro estúpidos” é até um elogio, não? Há pessoas que adoram estúpidos. Não conseguem controlar-se. O melhor é ignorá-los. Não responder. Pode ser que passe.
Obrigado por ter ajudado a demonstrar que o problema das agressões verbais não é a sua conotação sexual – própria dos piropos – mas a sua frequência e intensidade. Logo não nos devemos fixar nas agressões verbais com conotação sexual mas em todas as agressões verbais. QED.
Desta saga de posts sobre o piropo no cinco dias, retenho uma refrescante dose de caralhos, cus, broxes, boazonas, mamas, conas, punhetas e fodas, que me faz pensar se os autores estão a querer discutir o assunto, ou apenas a libertar através da catarse linguística impulsos e tensões sexuais acumuladas, senão mesmo a enviar sinais libidinosos codificados uns aos outros (isto é, piropos). Marquem uma orgia na agenda revolucionária e resolvam lá isso. E avisem para os leitores aparecerem.
Bravo, Nuno Cardoso da Silva. Já percebeu que parte do problema é a frequência com que as agressões acontecem. Agora substitua o medo de que lhe partam mesmo a cara pelo receio de que o apalpem ou violem, que da agressão sexual verbal passem para a agressão sexual física, e depois venha cá dizer outra vez que o conteúdo sexual é irrelevante. Já está? Eu ajudo:
Aos 13 anos o Nuno Cardoso da Silva ouve os primeiros “faz-me um broche”, “ganda traseiro”, “papava-te o olho do cu”. A caminho da escola homens que não conhece atiram-lhe com bocas, estalidos, gestos obscenos, abrandam o carro, buzinam-lhe. Uma vez decide responder, vencendo o medo e o condicionamento de vs gerações de “homem honrado não tem ouvidos”, e apalpam-no: metem-lhe a mão entre as pernas. Há quem se ria, apesar de para si (e para o código penal também, pelo menos desde 2007, com o crime de importunação sexual) ser uma agressão e uma humilhação. Não será a última vez que, contra a sua vontade, desconhecidos o agarram, se roçam contra si, lhe passam a mão no rabo.
Há quem defenda que os homens são o “beautiful sex” e que vocês são responsáveis pela atenção que suscitam. Ou que deviam sentir-se orgulhosos, talvez mesmo gratos, porque afinal há quem vos deseje e não encontre melhor maneira de o demonstrar do que explicar-vos, em pormenor e para quem quiser ouvir, o que gostaria de fazer com o vosso rabo. Experimenta vestir-se de forma mais discreta, evitar algumas ruas, mudar de passeio, mas a merda é a mesma.
Não percebe: não é especialmente bonito nem vistoso, é só porque é gajo, e os homens, dizem-lhe, não conseguem controlar-se. Aconteceu ao seu pai, ao seu irmão, aos seus amigos, como há-de acontecer aos seus filhos e netos. O melhor é ter cuidado e não dar troco. Andar de olhos baixos, fazer cara séria. Nos transportes públicos, em viagens de comboio, evita carruagens só com homens. A violação não é só um fantasma: acontece, como provam as estatísticas e lhe dizem desde pequeno.
Quando fala disso à sua namorada, ela acha que está a exagerar: “Mas é assim tão mau? Acontece assim tantas vezes?”. O pior é a reacção de alguns homens. Dizem que gostam de piropos, acham que é normal, e que VOCÊ também devia achar normal. Sempre que tenta falar disto, é acusado de homofobia: os homens não são todos assim, isso é misandria – apesar de o Nuno Cardoso da Silva estar careca de saber que felizmente não, os homens não são todos assim, e que criticar o comportamento de alguns homens, e o sexismo que dita que os homens são objectos sexuais à mercê dos homossexuais do sexo masculino, não equivale a odiar homens nem homossexuais.
Se o Nuno Cardoso da Silva ainda por cima é homossexual, qual é que é o seu problema? Afinal gosta de homens, gosta de ouvir elogios de homens, gosta de ser seduzido por homens, como é que eles hão-de adivinhar se você está interessado? O melhor é testar a água mandando umas bocas, na esperança sincera (conquanto que com reduzidas hipóteses de sucesso) de que depois de ter sido alvo de ameaças de sodomização em altos berros, você atravesse a rua, sorriso nos lábios e sexualmente excitado, a propor irem dali para um hotel, “coisinha fofa”.
Há quem ache que você é um maricas, uma flor de estufa. Quer tratamento especial só por ser gajo. Não gosta de sexo, é o que é – e ainda por cima quer castrar quem gosta!
O que vale é que acaba por se habituar. Com os anos, até pode ser que se esqueça do mau que era antes de ganhar calo.
Calma aí! Primeiro, o mundo não gira à volta das mulheres, por muito que a comunicação social e a publicidade consumista queiram fazer parecer o contrário. Segundo, a existência real de assédio e de violência não significa que essa seja a norma ou sequer que haja grande probabilidade de qualquer mulher ser disso vítima. Pode acontecer, mas a probabilidade de simples incómodo de manifestações imbecis ocasionais por parte de alguns homens é muitíssimo superior a situações de verdadeiro risco. Qualquer de nós pode ser assaltado na rua por um meliante, mas eu nunca fui e só me lembro de uma pessoa das minhas relações o ter sido. Há que controlar um pânico que não é justificado, e compreender que se não podem generalizar comportamentos desviantes. Os alemães não são todos nazis nem anseiam todos por exterminar judeus em câmaras de gás.
Significa isso que a possibilidade de verdadeiro assédio deve ser ignorada? Claro que não. Mas transformar todo o piropo como a antecãmara desse assédio parece-me paranóia. Tal como seria idiota mandar para a prisão qualquer alemão que diga que não gosta de judeus, na expectativa de que isso seja indício de que ele vai construir uma câmara de gás no quintal. Não gostar de judeus não conduz a querer exterminá-los, assim como o piropo, por muito ordinário que seja, não quer dizer que se quer violar a mulher em questão. O mundo está cheio de coisas desagradáveis e nós aprendemos a suportá-las desde que isso não ponha em causa a nossa integridade. As mulheres gostariam de poder circular sem nunca serem alvo de piropos imbecis? Compreendo, mas isso é estar a sonhar. E não há repressão judicial ou policial que impeça a ocorrência de coisas desagradáveis nas nossas vidas. Portanto, minhas senhoras, acalmem-se. Não deixem de lutar por um mundo mais civilizado nem deixem de exigir a punição dos verdadeiros crimes. Mas não deslizem para a paranóia.
“Qualquer de nós pode ser assaltado na rua por um meliante, mas eu nunca fui e só me lembro de uma pessoa das minhas relações o ter sido.”
Em contrapartida, se perguntar às mulheres que conhece se já foram apalpadas contra a vontade (um crime ao abrigo do código penal), ou se já passaram por situações como as descritas, talvez se surpreenda.
Quanto a ser “um sonho” não ser alvo de comentários sexuais agressivos (recuso-me a branquear a coisa chamando-lhes piropos), folgo em informá-lo que já é uma realidade em alguns países, e que não foram precisas leis para desencorajar um costume primata e degradante para as mulheres que em países como Portugal passa por natural e inevitável.
Também não me parece coincidência que os países em que há maior aceitação social deste fenómeno sejam também os países com maior incidência de violência contra as mulheres e desigualdades salariais mais extremadas.
Caríssima Morgada, sou sensível, como o seremos todos, aos retratos que, expressivamente, aponta. Sou, como pai, especialmente sensível aos constrangimentos a que alude dirigidos aos mais jovens.
Compreendo, perfeitamente, o seu ponto que não será, em nada, diferente do meu.
De notar que alguns dos mais impressivos exemplos aqui e ali lançados estarão no limite da fronteira penal, mais das vezes dentro do campo. Não surpreende, portanto, a coincidência entre a repulsa e desconforto das nossas almas inconformadas e a censura prevista na lei penal para tamanhas e tão expressivas ofensas. É sinal de que a validade vive, aqui!!
Como é evidente ao juízo estético corresponde um juízo ético e, ressalvando o mais puro formalismo, a questão do mau gosto é uma questão de desgosto!!
Um grande bem haja,
Cara Morgada,
as saudades que tinha de a ler!
o post que faltava. cumprimentos à Helena.
je vous embrasse,
R.
Parabéns à Morgada, que soube expor o seu/nosso ponto de vista com extraordinária pertinência, paciência e tenacidade.
Um pequeno apontamento para a Ana Cristina Leonardo: entre uma rua onde os homens largam frases humilhantes, como quem marca o território, e uma rua silenciosa, nem hesito. Mas a verdade é que não é preciso escolher entre essas duas alternativas. Nas sociedades onde não é considerado normal os homens ofenderem as mulheres, as ruas enchem-se de breves diálogos agradáveis entre desconhecidos. Small talk entre duas pessoas em vez de ele-ofende-ela-cala ou ele-ofende-ela-mete-o-na-ordem.
(Ó Morgada, só por curiosidade: em que país vives?)
Nalgum país nórdico onde a violação não precisa de preliminares nem de pré-avisos…