A morte é uma exagerada

425328_3337449874659_1317508021_n

Há precisamente um ano morreu o meu pai. Escrevi este texto na altura para ultrapassar a imagem que me ficou gravada dos últimos momentos. Há dias mais complicados que outros, este é um deles. Volto ao texto como forma de sentido, a haver um 

Quando tinha sete anos descobri a morte. Percebi que havia uma espécie de parede inultrapassável e um tempo eterno sem nós. O céu e as nuvens que até ali me tinham parecido coloridos esmagavam-me. Até o silêncio se tinha tornado ruidoso. O meu pai pegou em mim e explicou-me nessa noite as vantagens de se morrer e que nós tínhamos o nosso tempo de eternidade. Na nossa vida havia um pedaço de infinito em que todos os segundos contavam. Era a morte que nos dava a urgência e a necessidade de nos superarmos. A vida podia enganar o tempo, bastava dar-lhe sentido. Ironizava comigo que se fosse possível congelar as pessoas, para lhes prolongar a vida quando a ciência estivesse mais desenvolvida, estaríamos a obrigar as pessoas do futuro a descongelar muita porcaria. Poucos meses depois, o meu pai esteve à beira da morte. Ia, com Lino de Carvalho ao volante, para um comício, vinham de várias directas e adormeceram. Esteve 15 dias em coma a lutar para viver. Sobreviveu com mazelas irrecuperáveis. Nunca aceitou as suas limitações. Tentou recuperar pela escrita e pelo trabalho aquilo que tinha perdido em capacidade.
O meu pai queixava-se de o meu avô ter morrido jovem e de nunca lhe ter dito o suficiente. O meu avô nunca o tinha visto jovem, nunca o tinha visto homem. A última imagem que tinha dele foi quando lhe tinham pedido que o beijasse morto e o meu pai, adolescente, só tinha conseguido chorar.
Tive a sorte de conhecer o meu pai. Um jovem de cabelo branco, preso pela primeira vez aos 17 anos, para quem as causas e as paixões eram a única razão para respirar. Corria atrás do tempo perdido em quatro anos nas celas de Peniche. Dizia-me que a minha geração tinha muito tempo de avanço e que nos cabia aproveitá-lo. Havia uma urgência ditada pela entrega política e pela necessidade de viver em permanente estado de paixão.
Quando a sombra frágil que está ligada à máquina falhar terá ficado nos seus a urgência em que na vida curta tudo vale a pena. As paixões como as revoluções são tentativas de rompermos as leis que nos condenam à mediocridade e à servidão. No fim estaremos todos mortos, o que conta é termos sido capazes de um gesto livre.
Cresci a escutar a história de uma revolta perdida. íamos mudando de país em país: Checoslováquia, Argélia, Suíça, França, e chegámos a Portugal como clandestinos. À noite o meu pai não se cansava de me contar, como se fosse um conto de fadas, a história da Revolta dos Anjos. Dizia-me que depois de muitos abusos e opressão, os anjos tinham decidido revoltar-se. Na véspera do grande dia, o líder dos revolucionários sonhou que triunfava e ocupava o trono do tirano. O pesadelo começava, pouco tempo depois, com a canga das coisas inevitáveis, os revoltados tornavam-se senhores em vez dos senhores que tinham jurado derrubar. Depois de acordar, Lúcifer teria desistido da insurreição. A história tinha uma moral óbvia que nos impelia à prudência. Contudo, teimávamos em não lhe obedecer, apesar de sabermos que a maior parte dos esforços são vãos.
Transformar o mundo e mudar de vida, como exigiam Marx e Rimbaud, parece muita vezes sem sentido. Mas há algum sentido em estar parado? Nos seus Provérbios do Inferno, William Blake garantia: “O que deseja e não age gera pestilência.”
 A guerra dos anjos revoltados contra o poder de Deus é uma guerra perdida. Mas é um grito contra a adversidade.
 Como escrevia Giambattista de Marino, no seu Satã, “[…] e mesmo se tombarmos vencidos, ter tentado tão alto feito é ainda um triunfo…”
 Da mesma forma que a nossa vida é um grito que ecoa no meio da morte.
Esta entrada foi publicada em 5dias. ligação permanente.

5 respostas a A morte é uma exagerada

  1. maria isabel alves da cruz diz:

    Lembro me bem dele,fui sobrinha dte um tempo…(qd casou com a Cila)era bem miuda,talves 5,6 anos…era bem giro e diferente.

  2. Mariana diz:

    Durante a minha infância em Angola, conheci o irmão do seu pai e a sua família. As nossas famílias eram muito amigas, especialmente a grande amizade que unia o seu tio e o meu pai e que se manteve sólida até que o meu pai morreu há pouco mais de 8 anos.
    Lembro-me quase todos os dias do seu primo, o Miguel. Foi com ele que, aos meus 30 anos, constatei que “A Morte é uma exagerada”. Foi um dos meus grandes amigos que partiu, muito cedo na minha vida, e de quem sinto a falta todos os dias, sobretudo das suas gargalhadas. Lembro-me bem da coragem que teve durante o processo que o acompanhou até à sua morte. Foi um choque do qual ainda não recuperei e foi quase há 26 anos.

    O seu pai foi sempre um pessoa muito falada em casa dos meus pais, como sendo o irmão do tio Zé Miguel. Conheci o seu pai, mais tarde, no enterro da sua tia Teresa. Lembro-me muito bem dele, sobretudo porque me transmitiu que toda aquela situação que se estava a viver era de muito injusta.

    Apesar de não o conhecer pessoalmente a si, tenho seguido nos últimos anos o seu percurso naquilo que posso, sobretudo através dos jornais, e que demonstram a sua coragem, a sua combatividade e especialmente a sua frontalidade. Tem a quem sair, ao seu pai, seguramente. E também ao seu primo Miguel.

    E também, at

  3. Pedro Pousada diz:

    Que Pai fantástico deves ter tido, que sorte…olha há quem tenha pais que são felizes ausentando-se em vida da vida dos filhos, o teu pelo que aprecio da tua mensagem estará na tua vida para sempre e essa é a maior das recompensas, venceu o irreversível; lamenta aqueles que não tiveram nem terão a tua sorte pois saboreaste um néctar que a vida não distribui generosamente: o Amor paterno.

  4. Guilherme Mortágua diz:

    Também conheci o seu pai na festa do «Avante!»
    Era um homem bom.
    O problema do seu texto, é querer usar o nome do seu pai para se refazer dos maus momentos que tem proporcionado, desde que aqui é comentador.
    Não se pode usar o nome do pai com sentido de oportunismo.

    • nunotito diz:

      o seu texto é publicado para mostrar que existe um certo tipo de vermes. Gente que finge ser guardiã de uma ética revolucionária, mas não passa de um monte de esterco com que são feitos os bufos e os Pides. Sempre tive militância política, o que na minha profissão não é fácil, e certamente sempre tive o apoio do meu pai. Aliás, não podia ser de outra maneira. Você, viu-o na Festa do Avante e acha que pode usa-lo contra o filho. O meu pai não gostava de vermes como o senhor, infelizmente, não está vivo para o mandar à merda.

      PS- Este é o único comentário que este senhor que aparece como “hugo miguel”, “miguel botelho” e “guilherme mortágua” escreve aqui.

Os comentários estão fechados.