Glória

O Epicuro de P. del Monte casou-se com uma deusa etrusca e ambos percorrem agora o nosso país em lua de mel; mas há precisamente uma semana, na noite em que o fenómeno da super-lua assombrou o mundo, vimo-la todos juntos, gigante e espantosa, por cima do olival onde o eremita-filósofo deu o nó, perto da aldeia anárquico-comunista na Umbria de que já aqui falei.

A noite estaria sereníssima, não fosse o rumor distante de uma festa de San Giovanni (o nosso São João) que nos chegava, abafado, de uma aldeia próxima — mais um costume que aproxima os nossos países, a par do gosto pelo futebol e pelos lugares cimeiros no ranking mundial da corrupção. Perguntei se era “ballo liscio”, mais para mostrar que três anos depois de lá ter estado pela última vez ainda me lembrava dos usos e costumes locais.

“Não, é o Umberto Tozzi, conheces?”.

Digo que não, mas afinal parece que estava enganada. A lista de sucessos do tal Tozzi inclui o “Tu” e o “Ti amo”, tudo enormes sucessos do nacional-cançonetismo que atravessaram fronteiras e colonizaram os ouvidos de uma certa geração: trinta anos depois de os ter ouvido pela primeira vez, basta que me digam os títulos para que eu ouça na cabeça, como uma jukebox marada, “Ti-a-mo…ti-a-mo-ti…a-mo..”. Da aldeia continua a chegar-nos o som inconfundível dos sintetizadores.

“É assim: as aldeias querem sempre convidar grandes estrelas para as festas, para atrair mais gente, mas é claro que não têm dinheiro; então contratam cantores famosos de há vinte ou trinta anos, gente que chegou a encher estádios e que nesse tempo teria custado uma fortuna, mas que agora passou de moda e já só é apreciada pelos velhos”, explica o Epicuro.

A versão francesa da Wikipedia atesta que a carreira de Tozzi, que vendeu mais de 45 milhões de álbuns, “s’est ralentie depuis quelques années“, mas a medida do tombo fica clara quando horas depois, fazendo render o “cachet” pago pela comissão de festas, o sexagenário canta “Gloria”, o seu maior sucesso. A canção chegou ao mundo inteiro graças a uma versão de Laura Branigan (e quem, ao ler este nome, não desatar a cantar “You take my self, you take my self control”, pode gabar-se de nunca ter usado chumaços na vida), convenientemente expurgada da referência masturbatória do original de 1979, mas com a mesma batida elegíaca do disco tardio, entretanto caído em desgraça. “Disco might be dead“, mas Tozzi vive e, como todos nós, tem contas para pagar. Uma pessoa pergunta-se o que lhe passará pela cabeça, condenado a cantar “Gloria” todas as noites de Verão em vilarejos com pouco mais de mil habitantes, e se lhe escapará a ironia das voltas que o mundo dá.

“Sic transit gloria mundi”, remata o Epicuro de P. del Monte.

* O Umberto Tozzi pede desculpa por interromper a revolução em curso. Olá às 1.357 novas pessoas do 5dias. 

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2 respostas a Glória

  1. Há dias, aquando do anúncio da chegada desses 1357 novos autores, deixei um comentário lamentando a falta da Morgada, que julguei definitivamente perdida para os seus admiradores. Falei também no António Figueira, outro que se pôs na Senhora da Alheta. Não sei se disse alguma coisa sobre o terrorista Vidal, mas podia ter dito: os três foram a razão porque um dia vim a uma aldeia de comunas e liguei o feed. Estive várias vezes para o desligar, não se vem a um blogue para bocejar. Ainda bem que não o fiz, Morgada, agora que reapareceu.

    • Justiniano diz:

      Apenas para lamentar, aqui, as palavras do José Graça.
      Jamais, sob o céu português, sobre pedras ou mesmo sobre qualquer lamaçal português se admitiu a existência de uma aldeia de comunas. Como é consabido, desde tenros anos da escola, e se alguma virtude há naquela coisa do serviço público de ensino é simplesmente essa, de ensinar portugueses a serem portugueses e fazerem portugueses. Dizia, de todos os portugueses que fazem portugueses e que assim se fazem portugueses, sabem de berço e dos bancos de escola que aldeias de comunalha ranhosa só na Sibéria!!

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